terça-feira, 22 de dezembro de 2009

A fera do rock (Cap. 11/Parte 1)

Uma garoa persistente teimava em cair sobre a cidade, deixando a temperatura mais amena que o habitual no fim de novembro. A tarde escura combinava com os trajes roqueiros que vestíamos. E a água da chuva insistia em desarrumar nossos topetes. Molhado após alguns minutos de caminhada ao relento, o cabelo escorria desajeitado sobre nossas testas, desfalcando-nos de uma das principais marcas de um legítimo rockabilly.

- O Nique passou tanto sabão no topete que se ele parar aí no meio da rua consegue tomar um banho inteiro. Olha ali, já tá até formando bolhinhas - brincou o Wilson, satirizando o amigo que enchera o cabelo de sabão para fixar o penteado.

- No cabelo do Wilson a água nem consegue escorrer de tão duro que é - retrucou o Nique, fazendo jus à tradição que cultivávamos de responder imediatamente a qualquer troça sofrida. A troca de insultos, afinal, era um item quase obrigatório em nossas incursões pela cidade. Normalmente o bom humor prevalecia, mas vez ou outra alguém apelava.

- Cala boca! Vou é arrumar este topete, que tá uma merda - disse o Wilson assim que cruzamos a porta de entrada do shopping Eldorado.

A situação era realmente incômoda. Um rocker sem o topete é como um militar sem a farda ou um executivo sem o terno e a gravata, ou seja, praticamente nada. Por isso, a primeira atitude do grupo ao entrar no shopping foi se dirigir ao banheiro para ajeitar o penteado.

Depois de dar uma mijada, lavei as mãos e parei diante do espelho. Os longos fios de cabelo que normalmente formavam meu topete estavam caídos sobre a testa em forma de franja. Peguei o pente do Morcegäo emprestado para colocar os fios úmidos novamente no lugar, mas o gel fora embora com a água da garoa, impedindo o sucesso do reparo.

- Cacete, meu cabelo tá uma merda - reclamei diante do espelho, enquanto passava o pente de volta para o dono.

- O meu também tá uma inhaca. Não tem muito como ajeitar isso aqui, não - concordou o Morcegão.

O BB, que dividia conosco o espaço diante do espelho, pôs fim às lamentações: - Que se foooda, galera!!! A gente não veio aqui pra arranjar namorada, viemos para ver o Matador, “The Killer” - disse o garoto, enquanto os dedos de suas mão tocavam nervosamente a pia do banheiro, como se fossem os endiabrados dedos de Jerry Lee Lewis estraçalhando o teclado de um piano.

- É isso aí, vamos nessa. Já tá quase na hora da sessão - falei, concordando com o BB. Afinal, aquele era o dia de estreia do longa-metragem “Great balls of fire”, que contava a história de um dos pais do rock’n’roll, justamente ele, Jerry Lee Lewis.

Há dias aguardávamos ansiosos para assistir ao novo filme, estrelado por Dennis Quaid. As novidades eram poucas no universo rockabilly, uma vez que estávamos mais de 30 anos defasados em relação ao movimento original. Por esse motivo, a chegada de um filme sobre um dos principais ícones do rock’n’roll causara grande agitação entre os membros da turma. Logo que ficamos sabendo o dia da estreia, nos organizamos para acompanhá-la. Além da grande curiosidade pelo personagem principal, não podíamos ficar atrás das outras turmas de rockers da cidade.

Formado por dez garotos, nosso grupo percorria as escadas rolantes e corredores do shopping sem se preocupar em ser discreto. Os seguranças nos miravam com olhar severo, à distância.

Me separei do grupo por alguns instantes para comprar um presente para a Karen, a japonesinha simpática que havia tirado no amigo secreto da escola. Apressado, entrei numa loja de moda jovem e comprei uma carteira preta com um imenso símbolo do Batman. Também graças ao cinema, o homem das trevas andava na moda naquela época. Só não parei para pensar se aquele seria um bom presente para uma garota de catorze anos. Na verdade, acho que a coitada, depois de esconder aquela lembrancinha de gosto duvidoso em algum canto do armário, deve ter passado anos sem participar das trocas de presentes que marcam o fim de ano.

Compra feita, saí andando apressadamente rumo ao terceiro e último piso do shopping, onde ficavam as salas de cinema. Logo vi parte dos topetudos, ou ex-topetudos, amontoada perto da catraca. Antes de ir ao encontro deles, enfiei a mão no bolso da jaqueta e peguei o dinheiro que havia separado para o ingresso.

A testa enrugada da bilheteira denunciava sua estranheza diante da clientela daquela tarde de sexta-feira. A senhora gordinha, que me olhava com uma cara curiosa, fez menção de falar alguma coisa, mas acabou desistindo. Só quando eu já saía com o bilhete, tomou coragem:

- Ei, por que vocês todos estão vestidos assim? Vocês são punks? - questionou a senhora de pele mulata e rosto redondo, aparentando uns cinquenta anos.

- Não, não, somos rockabillies.

- Aaah! E o que é esse tal de rock, rockabill, rockbilly?

- A gente curte os anos 50, dona. Música, roupa, visual e tudo mais.

- Que bonitinhooo!!! Todo mundo igualzinho, né?!

- Mais ou menos, mais ou menos. Ninguém é igualzinho, né? Mas deixa eu ir, o filme já vai começar.

- É, é, o trêiler já deve estar passando.

Pelo jeito a ausência do topete havia acabado com a nossa moral. A bilheteira tinha até nos achado bonitinhos. Não podia haver nada pior!

sexta-feira, 4 de dezembro de 2009

Uma conversa muito louca (Cap. 10/Parte 2)

O curto passeio pelos corredores da escola pareceu durar uma eternidade. A porta da sala da diretora estava entreaberta quando chegamos. Antes de entrar, o bedel deu uma leve batida com os nós dos dedos da mão direita na madeira da porta. Depois, colocou a cabeça para dentro e anunciou nossa chegada: - Dona Vera, com licença, o Cláudio está aqui. - Um breve silêncio antecedeu a resposta da diretora, que usou um tom de voz rigoroso para pedir que eu entrasse.

Os escuros olhos verdes da diretora fixaram-se em meu rosto com um ar pouco amistoso no mesmo instante em que transpus o umbral da porta. Meu estômago queimava diante das pouco animadoras perspectivas. Apesar de um pouco invocado, sempre fui quieto, pouco afeito à bagunça, por isso não estava familiarizado com situações daquele gênero. Aquela era apenas a segunda vez que entrava naquele temível escritório, símbolo supremo da autoridade escolar. Minha primeira visita fora mais de dois anos antes, quando me envolvi em uma briga durante a aula de educação física.

A mulher de volumoso cabelo cor de fogo, cuja idade passava alguns anos dos quarenta, compensava a baixa estatura com uma postura enérgica, dosada por pitadas de compreensão, provavelmente adquirida graças aos estudos que fizera na área de psicologia. A disciplina de Freud era, aliás, a grande paixão da diretora, que conciliava o trabalho na direção da escola com aulas sobre o tema para os alunos do primeiro colegial. Caso continuasse por ali, seria, inevitavelmente, aluno dela no ano seguinte, como acontecia com meus rivais naquela ocasião.

- Sente-se, por favor - falou Dona Vera, enquanto o Bedel fechava a porta atrás de mim.

Ajeitei-me na cadeira, observado atentamente pela diretora, cujo silêncio contribuía para aumentar a gravidade da situação.

- Então, Cláudio, o que está acontecendo? O que esses rapazes vieram fazer aqui?

- Naaada - falei de forma arrastada, hesitando para responder a pergunta.

- Como nada? Ninguém sai de longe só para passear na porta de uma escola.

- Bem, na verdade, eles ficaram sabendo que tem uma turma aqui que não gosta muito de rockabilly. Então, bem, resolveram vir saber por que isso acontece.

- O que há de estranho nisso? Ninguém é obrigado a gostar da mesma música que vocês.

- Bem, é verdade. É que não é bem da música que eles não gostam. Eles não gostam das pessoas que gostam de rockabilly.

- Como você?

- Ééé.

- Huumm - resmungou a diretora, cruzando os braços sobre a mesa e cravando o olhar ainda mais fundo em meus olhos. - Sabe, ser diferente não é uma coisa fácil. Você lembra de mais alguém em toda escola que se vista desse jeito?

- Não - respondi, sentindo uma ponta de orgulho.

- Então, se todos se vestem de maneira normal e você usa essas jaquetas pretas, quem está errado?

- Não sei.

- Talvez fosse melhor você deixar de usar essas roupas na escola.

- É, talvez, mas se o uniforme está liberado...

- Sabe, nós precisamos saber distinguir o lugar certo para cada coisa. Essa roupa seria legal numa festa, mas não na escola. Você já imaginou um advogado indo a uma audiência trajado dessa maneira?

Cabisbaixo, mirei por um instante as pontas finas das minhas botas. É claro que eu podia entender o que a diretora falava, afinal meu pai dizia a mesma coisa fazia uma eternidade. “Mas rockabilly não é só uma roupinha de festa, é muito mais que isso”, meditei, procurando tomar coragem para me expressar novamente. Sobre meu colo, minhas mãos se esfregaram, revelando a ansiedade que me dominava, enquanto a sala era ocupada por um ameaçador silêncio. Tomado por uma súbita coragem, decidi explicar minhas ideias à diretora, talvez ela compreendesse minha situação. Ergui a cabeça, um pouco intimidado, e disparei minha frase favorita.

- Rockabilly não é só música ou dança. É um estilo de vida que te acompanha vinte e quatro horas por dia - disse em tom sério, fazendo uma breve pausa para realçar a importância da declaração, antes de concluir o pensamento. - Por isso, tanto faz o lugar, um rocker é sempre um rocker.

A diretora respirou fundo, pouco satisfeita com a minha resposta. Depois voltou à carga.

- Você já ouviu falar no Roman Polanski, o diretor de cinema?

Surpreso com a pergunta, pensei por um instante em busca da resposta. “Puts, já ouvi esse nome, mas agora não lembro direito quem é. Devo ter ouvido o Léo falar alguma coisa sobre ele”, matutei, lembrando-me de um jovem amigo cinéfilo.

- Acho que sim - respondi pouco convicto.

- Esse diretor, o Roman Polanski, sempre foi um homem muito polêmico. Quando ele estava cursando cinema, ainda na Polônia, organizou um baile de alunos e convidou um bando de arruaceiros para invadir a festa e causar confusão para que ele pudesse gravar um filme, misturando ficção e documentário.

“Poxa, que ideia legal”, pensei, sem compreender onde a diretora queria chegar.

- Mas, anos depois, quando já era um diretor consagrado, ele se casou com uma atriz famosa, muito bonita, a Sharon Tate, que tinha trabalhado em um filme dele. O problema é que um dia a casa dessa atriz foi invadida por uma gangue de fanáticos, liderados por um psicopata - nesse instante, a diretora fez uma breve pausa, buscando na memória os detalhes da história que narrava. Ainda sem entender absolutamente nada, eu a observava com as sobrancelhas franzidas e ar curioso.

- Esse líder da gangue achava que era Jesus Cristo reencarnado e também acreditava que os Beatles eram anjos enviados à Terra para avisar sobre o apocalipse. Era um fanático por rock e seus seguidores formavam a gangue que invadiu a casa da esposa de Polanski - narrava dona Vera, com os olhos mergulhados nos meus e ainda com ar severo, criando uma tensa atmosfera. - Essa gangue invadiu a casa da Sharon Tate e promoveu uma chacina, matando a atriz e todos os amigos dela que estavam por ali. Depois, os assassinos escreveram nas paredes, com o sangue das vítimas, três frases que faziam referência às músicas dos Beatles. Uma dessas frases era “Helter Skelter”, pois eles achavam que a canção do quarteto inglês representava o caos total, a revolução final, a destruição - continuou a educadora, absorta na terrível narrativa. Eu continuava observando-a atentamente, agora com uma careta no rosto, onde misturavam-se curiosidade, estranheza e um bocadinho de piedade.

- É verdade que os Beatles não tinham nada a ver com isso. Esses assassinos eram uns loucos varridos - encerrou dona Vera, com a expressão aliviada, saindo do êxtase. Logo em seguida, continuou: - Eu pedi para seu pai vir buscá-lo. Você vai levar apenas uma advertência, mas não quero mais saber de confusão. Fique longe dos rapazes do colegial. Eles me disseram que você começou tudo dando uma ombrada no Ronaldo alguns dias atrás. Então, evite ficar perto deles. O último bimestre já está começando e não seria nada bom pra você levar uma suspensão ou até ser expulso nessa altura do ano.

- Ma-mas, dona Vera - gaguejei, querendo explicar que não era o único responsável pela confusão. - O Ronaldo e o pessoal do colegial vivem me provocando, eles chegaram a escrever na parede da classe...

- Agora chega. Eu já conversei com o Ronaldo e não quero mais saber de confusão - concluiu a diretora, segundos antes do sinal soar pelos corredores da escola, anunciando o horário de saída dos alunos do colegial. - Aliás, mandei que ninguém saísse até que seus amigos fossem embora, seja por iniciativa própria ou com a ajuda da polícia, que já está a caminho. Queira se retirar, por favor.

Novamente cabisbaixo, sentindo-me derrotado, tratei de me levantar. As forças para prosseguir argumentando tinham se esvaído e estava claro que a balança não pendia muito pro meu lado. Alojei minhas mãos nos bolsos da calça, balancei a cabeça para me despedir da principal autoridade do universo escolar e segui caminhando rumo à porta. Antes de abri-la, entretanto, um pensamento surgiu em minha cabeça: “Porra, cara, cadê seu orgulho? O James Dean nunca sairia da sala da diretora desse jeito.” A nobre ideia fez com que ajeitasse meus ombros, até então curvados em um inconsciente sinal de subserviência. Logo em seguida, tirei as mãos do bolso e as conduzi até a gola da jaqueta, tratando de revitalizar o visual roqueiro. “Assim é melhor. Derrotado, sim. Humilhado, não”, disse para mim mesmo, recobrando a auto-estima, enquanto minha mão direita girava a maçaneta da porta.

A recente conversa com a diretora ainda ressoava em minha cabeça quando entrei no corredor. Apesar de não simpatizar muito com a causa rockabilly, ela não tinha me suspendido nem expulsado, como muita gente apostara pelo colégio afora. Mas o que realmente me intrigava era a história do Roman Polanski. “Caramba, não entendi nada. Será que ela quis me comparar com o tal diretor de cinema ou quis dizer que a minha turma é igual à tal gangue de malucos que ela falou. Não sei, não, acho que ela viajou na maionese ou, então, não tá batendo bem.”

quarta-feira, 2 de dezembro de 2009

Polanski e Buddy Holly

Olá, amigos! Neste décimo capítulo, o protagonista do livro tem uma séria e pouco esclarecedora conversa com a diretora da escola onde estuda. Em sua argumentação, a educadora cita o diretor Roman Polanski. Adepto de temas bizarros e muito humor negro, o cineasta voltou à cena internacional graças à sua recente prisão na Suíça, em conseqüência de um processo que responde nos Estados Unidos por ter mantido relações sexuais com uma garota de apenas 13 anos, em 1976. Bem, quem quiser conhecer um pouco mais sobre Polanski, que aparece na foto ao lado com Sharon Tate, pode conferir os trailers de um dos seus principais filmes, Chinatown, que estão disponíveis no YouTube pelos seguintes links:
http://www.youtube.com/watch?v=2yJJWXhXbuI
http://www.youtube.com/watch?v=3aifeXlnoqY
Já quem prefere mesmo um bom rock’n roll pode conferir um vídeo do cantor Buddy Holly, citado durante a garimpagem do capítulo 8. Trata-se de uma apresentação, feita em dezembro de 1957, em um programa de tv norte-americano.
http://www.youtube.com/watch?v=WQiIMuOKIzY
Grande abraço!

terça-feira, 24 de novembro de 2009

Uma conversa muito louca (Cap. 10/Parte 1)

Mal acabara de atravessar a porta da classe quando avistei o Nasser caminhando com passos apressados em minha direção. A expressão de surpresa desenhada no semblante do garoto e o ar excitado com que caminhava não deixavam qualquer dúvida, havia confusão por perto. “Xiii, já vi esse filme!”, concluí, pouco antes dele abrir a boca.

- Cara, a porta da escola tá lotada de rockabilly. Até o Wilson, que estudou com a gente, está aí - disse o recém-chegado.

Dias antes eu havia relatado aos companheiros de rock que a situação na escola ultrapassara os limites. A notícia da grande pichação estampada sobre a parede da classe tinha indignado a turma inteira. Também unânime fora o sentimento de entusiasmo que se formara em relação à minha atitude logo após a ofensa. Todos vibraram quando contei que aguardara um encontro fortuito na escadaria da escola para dar uma ombrada desafiadora no principal suspeito, o Ronaldo. Em seguida, a vibração continuou com o relato da quase briga gerada pela provocação.

- Se eles querem treta, vão ter treta - bradou o Tieta.

- Vamos mostrar pra esses caras quem é cuzão - revoltou-se o Nique.

- Temos que tirar satisfação com esses caras - resumiu o Wilson.

Uma reunião na domingueira da Cave definira o “Dia D”, a segunda-feira seguinte. Ou melhor, a manhã seguinte. Para meu alívio, já que a indignação esfriara e um certo arrependimento surgira, na segunda-feira nenhum topetudo apareceu na hora da saída. Logo imaginei que a distância deixara a turma desanimada, afinal para ir até a escola eles precisariam pegar um ônibus para percorrer catorze quilômetros de estrada e ainda caminhar mais um quilômetro e meio. Somente naquele instante, quando o Nasser surgiu com a novidade, o engano foi constatado.

- É mesmo? Pensei que eles tivessem desistido - murmurei, sentindo um frio na barriga. Depois, meus ombros se ergueram sinalizando a minha resignação. “Quem tá na chuva é pra se molhar”, matutei, deixando o Nasser para trás.

Com a mochila preta pendurada no ombro direito e as mãos enfiadas no bolso da jaqueta, segui sozinho para a porta da escola. A agitação nos corredores parecia crescer a cada passo que dava sobre o piso de cimento. No entanto, caminhava sem pressa. Sabia que o encontro com o pessoal do colegial não ocorreria tão cedo. O sinal que tocara minutos antes, logo após o meio-dia, indicava o horário de saída somente para os estudantes do primário e ginásio. Os alunos do colegial sairiam apenas cinquenta minutos depois.

Antes que eu alcançasse o portão, o Mathias, meu irmão, veio correndo ao meu encontro. Apreensão e excitação também se misturavam no rosto claro do menino, emoldurado por revoltos cachos de cabelo castanho claro.

- Porra, todos os seus amigos estão aí. O Tieta, o Demente, o Píter...

- É, eu sei.

- Caramba, que confusão você arrumou. A mamãe e o papai vão ficar loucos na hora que ficarem sabendo. Se bem que os caras são folgados mesmo - matracava meu mano, um ano e seis meses mais novo, enquanto caminhava ao meu lado.

- Olha - falei ao mesmo tempo em que parava no lugar, pouco antes do portão da escola - toma conta da minha mochila e não fica por perto, não. Você ainda é muito pirralho - disse, de forma séria mas preocupada, passando a bolsa com meu material escolar para o garoto antes de retomar a caminhada.

Dona Zefa me observava como no dia frio de inverno em que pela primeira vez desfilara meu topete no território escolar. Mesmo assim, não deixei de cumprimentá-la.

- Boa tarde, dona Zefa.

A senhora mulata apenas sacudiu a cabeça. Logo que atravessei o portão, vislumbrei alguns topetudos encostados em um muro do outro lado da rua. Estavam ali o Cabeção, o Luís, o Fernandinho, o Píter, o Morcegão e dois conhecidos do Bonfigliolli, o Thiago e o Alex, que haviam se solidarizado com nossa nobre causa. Afinal, em nossas cabeças adolescentes, éramos os topetudos guerreiros do bem numa cruzada contra o mal, que se materializara na forma de garotos riquinhos da Granja Viana.

Andando mais um pouco, vi o resto da turma. Tieta, Wilsão, Demente e Nique - a tropa de choque - conversavam com dois veteranos alunos do terceiro colegial diante da escola. Após acenar para os rapazes do outro lado da rua, resolvi me aproximar do local da conversa, naquele momento acompanhada à distância por dezenas de estudantes do ginásio.

Como índios pintados para a luta, os roqueiros estavam mais caracterizados do que em qualquer outra ocasião. Os topetes chamavam quase tanta atenção quanto as enormes fivelas que se destacavam na cintura dos rapazes. As jaquetas tinham as golas erguidas e em quase todos os pés viam-se botinas de bico fino, algumas delas equipadas com esporas. Esse último acessório, aliás, conferia um efeito cênico expressivo, apesar de sua utilidade durante uma briga ser bastante contestável.

- Claudinho, chega aí! Tamos trocando uma ideia com os camaradas aqui - convocou o Wilsão, assim que me viu. Poucas passadas bastaram para que alcançasse os rapazes reunidos sob a sombra de uma árvore. Após saudar cada um dos meus quatro amigos, cumprimentei com um meneio de cabeça os dois garotos do terceiro colegial liberados antes da hora.

- O Raul e o Geleia aqui estão falando que ninguém tem nada contra rockabilly por aqui. É tudo um mal entendido - falou o Tieta com o queixo erguido, o rosto levemente inclinado e uma ponta de ironia na voz.

- Não é o que parece. Estão xingando a gente até nas paredes da escola.

- Espera aí, Claudinho, eu nunca mexi com você - retrucou o Raul, um sujeito atlético, habilidoso no futebol e que, apesar do número significativo de espinhas que marcavam seu rosto, fazia um considerável sucesso com as meninas.

- Realmente, nunca tive problemas com vocês. Ninguém do terceiro nunca disse nada, mas tem uma galera do primeiro e do segundo que já ultrapassou o limite.

Mantendo uma certa simpatia na forma de falar e gesticulando muito, o garoto continuou a argumentação, demonstrando uma razoável habilidade como negociador. O outro rapaz, um sujeito forte e de temperamento mais introspectivo, mantinha-se em silêncio, com os braços cruzados, observando atentamente o debate. Em seu rosto observava-se uma expressão desafiadora e também uma certa dose de desprezo. Estava claro que não temia a turma de roqueiros.

- Poxa, é bobeira a gente continuar com isso. Na hora que tocar o sinal vão sair trinta, talvez quarenta moleques prontos pra brigar. A coisa vai ficar complicada pra vocês também - argumentou o Raul, como um amigo que quisesse nos precaver do pior. Essa perspectiva, no entanto, pouco incomodou os quatro topetudos ao meu lado. Como eu, eles sabiam que nem todos os alunos que sairiam ao toque do sinal estariam dispostos a entrar numa briga. Existia o risco, é verdade, mas nenhum deles parecia preocupado com essa perspectiva.

- Bom, aí é pagar pra ver - ressaltou o Demente em tom desafiador, mostrando-se pouco disposto a partir.

Um pequeno pátio estendia-se diante da escola. Essa área, onde quatro árvores de porte médio proporcionavam uma agradável sombra, normalmente ficava movimentada após as aulas, com a presença de alunos de diversas séries, alguns aguardando os pais e outros aproveitando para colocar a conversa em dia. Naquele início de tarde, um clarão estava aberto ao redor dos roqueiros. Meus colegas de oitava série observavam tudo de longe, enquanto as beldades da turma da Mariana acompanhavam os acontecimentos de um canto do terreno, próximo ao portão do colégio.

O segurança da escola, acompanhado por um dos bedéis, surgiu diante do portão e logo se encaminhou para o epicentro dos acontecimentos. O moço alto, cujo rosto estava tomado por uma expressão grave, logo dirigiu a palavra para mim.

- A diretora quer falar com você, acho que seu futuro por aqui não é muito bom, não - falou o rapaz da segurança, erguendo as sobrancelhas e sacudindo a cabeça.

Hesitei por um instante. O frio na barriga aumentou. Aquela era a notícia mais previsível que eu poderia receber. Mesmo assim, não consegui assimilá-la muito bem. A perspectiva de alguma punição severa, talvez até a expulsão, não era nada animadora. “Puts, o que meu pai vai falar? E minha mãe? Pra piorar tudo o vovô e a vovó estão em casa hoje”, ouvia gritarem meus pensamentos, sentindo pesar a consciência, ao mesmo tempo em que outra voz bradava: “Você tá com a razão, você tá com a razão.”

- Vai lá, Claudinho. A gente vai ficar aqui esperando o sinal - afirmou o Nique.

- É isso aí, é só contar que você não tem nada a ver, que a gente veio porque quis - recomendou o Wilsão.

- Bem, vamos lá - resignei-me, levando o olhar até o rosto sério do segurança.

Meus dedos correram sobre a gola da jaqueta, cuidando para que o estilo James Dean não fosse perdido. Em seguida, iniciei a caminhada, acompanhado pelo bedel. Quase ao lado do portão de entrada, senti pousar com insistência sobre mim um encantador par de olhos azuis. “Poxa, será que essa gata tá querendo alguma coisa comigo?”, questionei-me, esquecendo por um instante a grande confusão que protagonizava naquele início de tarde. A animação, no entanto, durou pouco tempo, mais precisamente até o momento em que a delicada loirinha, de figura quase angelical, sussurrou à minha passagem: - Cuzão!!!

Um sorriso discreto brotou em meus lábios assim que constatei meu profundo engano. “Nossa, viajei, achei que a patricinha tava interessada em mim. Bom, pelo menos ela não chega aos pés da Mariana. Mas que não seria nada mal, isso não seria”, matutei antes que a realidade desfizesse minha distração.

quarta-feira, 11 de novembro de 2009

Uma desagradável surpresa (Capítulo 9)

Faltavam menos de cinco minutos para o início do dia letivo. No corredor que conduzia à sala da oitava série, alguns estudantes aproveitavam para colocar a conversa em dia, recostados nas paredes brancas ou apoiados nos batentes das portas existentes pelo caminho. Eram quase todos meninos, imersos em acalorados debates sobre os resultados da rodada de meio de semana do Brasileirão. O burburinho era maior diante da entrada da oitava série, localizada justamente no final do corredor. “Ué, o que será que aconteceu pra galera estar tão agitada?”, me perguntava, enquanto percorria os últimos metros antes de chegar à classe em que estudava. A resposta, no entanto, não demorou muito a me alcançar, pois, assim que me viu, o Nasser correu ao meu encontro.

- Você não vai acreditar no que escreveram no fundo da classe - disse o garoto, observado pelo restante dos meninos que se aglomeravam diante da porta.

- O que foi? - questionei, desconfiado diante da maneira com que meu amigo me abordara.

- Alguém escreveu na parede uma frase te xingando.

- Como é? Quem pode ter feito isso? - falei, estancando no meio do corredor e lançando um olhar de surpresa para meu prestativo amigo. Mas, antes que ele pudesse dar qualquer resposta, retomei a caminhada rumo à sala de aula, substituindo as passadas preguiçosas que me conduziam instantes antes por passos decididos, estimulados pela ânsia de confirmar a informação recém-passada pelo Nasser, cujos pés se moviam na mesma velocidade que os meus, me acompanhando no trecho final do corredor. Quando chegamos à porta da classe, o grupo prontamente abriu caminho para que passássemos. Os jovens olhos dos rapazes acompanhavam meus movimentos com atenção, aguardando o desfecho da situação.

As enormes letras escritas em verde sobre a parede branca saltaram diante dos meus olhos assim que passei pelo amontoado de estudantes parado na porta da sala de aula. Minhas sobrancelhas se franziram e meu semblante foi tomado por um ar grave. Diante de mim, duas palavras redigidas em letras maiúsculas pouco caprichadas compunham uma curta frase: “ROCKABILLY CUZÃO”.

Uma dose de mágoa se apoderou do meu peito. Logo, no entanto, esse sentimento cedeu espaço para uma intensa indignação, fazendo com que um arrepio de raiva descesse por minha coluna. “Não acredito nisso. Quem pode ser o retardado que escreveu essa merda?”, me indaguei, indignado com a ofensa e imaginando quem poderia ser o autor da frase. “Isso é coisa do Ronaldo e daquele bando de zélão que anda com ele. Esses caras já tão passando do limite”, concluí, dispensando qualquer investigação para eleger o culpado.

- Ah, isso não vai ficar barato, não vai, não - falei baixinho, mais indignado do que magoado.

- Porra, estudo aqui desde a primeira série e nunca vi uma coisa dessas - disse o Nasser, com os olhos ainda fixos nas ofensivas e anônimas palavras. Em seguida, uma voz de menina sentenciou: - Não liga, não, Claudinho. Quem escreveu isso é um puta babaca. - Imediatamente reconheci a dona da voz. Era a Marília, que tentava emprestar um pouco de sabedoria feminina para o beligerante universo masculino. Virei primeiro minha cabeça e depois todo meu corpo na direção de onde viera a voz. A Marília estava sentada numa carteira à minha esquerda, lá na frente, bem no início da classe.

- Não esquenta com isso, Claudinho. É despeito - reforçou a garota, sempre sincera e direta.

- Não sei, não, Marília. A coisa tá passando do limite - respondi, sem atender à recomendação da colega de classe. Afinal, era muito difícil ficar impassível à ofensa estampada diante de toda sala. Além disso, apesar de ser uma garota inteligente, a Marília não podia compreender a dimensão que aquelas palavras tomavam no universo masculino.

- Por que você não reclama com a direção? - sugeriu a Camila, também querendo apresentar uma solução para o problema. Infelizmente, ao menos para mim, aquela era uma saída inconcebível. Recorrer à diretora seria a desmoralização completa.

O estridente toque do sinal foi seguido pela imediata chegada da professora de língua portuguesa. Isso fez com que os rapazes parados na entrada da classe se apressassem a sentar. Bem, na verdade, nem todos. Havia sempre aqueles que aguardavam até o último momento para se acomodar, em parte porque não esquentavam muito a cabeça com a aula, mas também porque sentiam um inegável prazer em desafiar os professores. Com pouco mais de quarenta anos, a professora de português, uma mulher baixa de cabelos castanhos claros e curtos, sabia levar bem a classe, alternando momentos de um certo carinho com uma inquestionável autoridade.

- Vocês estão esperando o quê? Sentem logo, temos muita coisa pra fazer - disse a educadora em tom enérgico, fazendo com que os retardatários se apressassem.

- Psora, você viu o que escreveram lá no fundo? - disse o João Paulo, enquanto se esparramava pela carteira.

- Huuum? - respondeu a professora, tirando os olhos da agenda e direcionando-os para a parede no fundo da classe. Após mirar a frase por um instante, balançou a cabeça em um gesto de desaprovação. Em seguida, voltou-se para o garoto que dera o aviso: - João, procure a faxineira e peça pra ela vir até aqui.

O garoto esperto, conhecido por misturar um jeitão extremamente extrovertido com uma acentuada religiosidade, ergueu-se rapidamente, sumindo pelo corredor. Logo depois, reapareceu, acompanhado da faxineira, uma senhora magra, de pele parda e feições simples.

- Dona Maria, por favor, limpe pra gente essa pichação na parede do fundo da classe. Pelo jeito, tem gente que não tem mais o que fazer - disse a professora, orientando a senhora recém-chegada, que, prevenida pelo João Paulo, já viera carregando uma escova e um balde cheio de água.

A aula prosseguiu, mas em poucos instantes meus pensamentos se encontraram com a gramática lecionada pela professora. O barulho da escova roçando a parede ou mergulhando no balde de água não permitia que deixasse de remoer o inesperado acontecimento daquele início de manhã.

Rockabilly à argentina - 2


Oi, pessoal! Começo esta postagem pedindo desculpas pela minha ausência nos últimos dias. Acontece que recentemente peguei a assessoria de imprensa de um evento e o tempo ficou um pouco escasso nessa virada de outubro para novembro. Para compensar, segue uma outra dica com sotaque espanhol, a banda Los Primitivos, recomendada por uma das seguidoras do Aventuras de um Rockabilly, a Baby. Abaixo seguem os links para duas apresentações da banda Argentina, que, aliás, esteve recentemente no Brasil, se apresentando no Psycho Carnival, em Curitiba.
http://www.youtube.com/watch?v=3B3qHpeWbLU&feature=related
http://www.youtube.com/watch?v=sOVsfY5Dlg4
Grande abraço,
Pedro

quarta-feira, 7 de outubro de 2009

Uma tarde de garimpagem

O centro da cidade estava fervilhante naquela tarde de quinta-feira. Muitas pessoas passavam apressadas, acompanhando o ritmo acelerado da metrópole. Outras tantas se deixavam seduzir pelas atrações típicas das ruas da região, como um sujeito engraçado que prometia cuspir fogo e um entusiasmado pastor evangélico que agitava a bíblia ferozmente de um lado para o outro.

A agitação era tamanha que andávamos quase sem ser notados. Quase, é verdade, porque vez ou outra era possível ouvir algum comentário. Diante de um boteco, um sujeito alto, mulato, que bebericava uma cerveja gelada enquanto observava o movimento na rua, não resistiu. Cutucou o amigo sentado ao lado e disparou: “Olha lá o tipinho da molecada, tão achando que voltaram no tempo. Elvis não morreuuu”, brincou o moço, tirando risos do amigo e do atendente do bar, que enxugava um copo do outro lado do balcão.

- Cara escroto, merecia umas porradas - revoltou-se o Morcegão, justamente o caçula entre os roqueiros do Bonfigliolli.

- Não esquenta, Morcego. Daqui a pouco a cachaça derruba esse escroto - aconselhou o Wilsão, valendo-se da condição de mais velho e experiente integrante da turma.

Aquela era uma região da cidade que me agradava bastante. Sentia-me bem vagando pelas ruas movimentadas do centro, sem me incomodar com o trânsito, a poluição e o barulho característicos daquele pedaço da maior cidade brasileira. Naquela tarde não era diferente, por isso caminhava satisfeito pelas agitadas vias do coração de São Paulo na companhia de três topetudos em busca de novos discos para o acervo da turma. Além do Morcegão e do Wilson, o Duque também integrava o grupo. Ele, afinal, era uma espécie de consultor musical da turma. Qualquer aquisição ficava mais segura com o seu acompanhamento.

Logo após terminarmos a travessia do Viaduto do Chá, quando já passávamos diante do imponente prédio do Teatro Municipal, um comentário meu deixou o Morcegão ainda mais indignado.

- Porra, vocês acreditam que um dos meus tios não fala mais comigo porque eu sou rockabilly?

- Caramba, que cara louco. Não tem nada a ver - indignou-se o Morcegão.

- É, outro dia fui numa festa do meu primo e ele nem me cumprimentou. Passava por mim e me ignorava. Pra compensar, teve uma gatinha, filha de um amigo dele, que ficou encantada comigo. Vinha toda hora puxar papo.

- E você pegou? - questionou o Wilsão, entrando na prosa.

- Não deu, era uma festa muito família. Tava minha vó, tios, tias, todo mundo.

- Deixa de ser devagar, Claudinho.

- Mas espera aí que eu ainda não terminei. Sabe o que esse meu tio falou da última vez que trocou ideia comigo?

- O quê?

- “Esse papo de rockabilly é coisa de veado. Esses caras aí que gostam de rock são todos umas bichas.” Foi isso que ele disse.

- Porraa, esse seu tio é muito folgado - revoltou-se o Morcegão.

- É isso aí, nem conhece a gente e fica falando merda - apoiou o Wilsão, já rangendo os dentes.

Apenas o Duque manteve a calma: - Sempre vai ter gente falando essas coisas. Os caras não conhecem então ficam falando bobeira. Ou é marginal, ou é maloqueiro, ou é bicha. Neguinho vai sempre falar, a gente não pode dar bola pra isso - sentenciou o Duque, fleumático como sempre.

- E ainda tem uma outra tia que veio me pedir explicação sobre a minha seita - acrescentei, sem conter a verborragia.

- Porra, seita. Aí já é demais - falou o Duque com um sorriso no rosto.

Uma loja de discos alguns quarteirões à frente fez com que interrompêssemos a indignada discussão. Percorremos as prateleiras até achar o que nos interessava. Num canto escondido da loja estavam enfileirados alguns discos do verdadeiro rock’n’roll.

- Esse mundo tá perdido, os discos de rockabilly ficam soterrados no fundo da loja enquanto essas porcarias de poperô, A-Ha, Gun’s Roses e Oingo Boingo ‘tão’ por toda parte - resmungou o Morcegão, fazendo jus ao mau humor que o dominara naquele dia.

- Pô, Morcego. Isso que é bom, esses discos não são pra qualquer um. Já pensou aquele monte de zélão da escola curtindo o nosso som. Aí sim seria o fim do mundo - falou com sabedoria o Duque, ganhando apoio generalizado.

- Isso é verdade, já imaginou os playboyzinhos escutando o nosso som. Blergh... Me dá enjôo só de pensar - concluiu o Morcegão, mostrando uma rápida assimilação dos ensinamentos.

- Esses discos aqui já são todos manjados. Esse eu tenho. Esse outro aqui o Nique já tem - comentei enquanto analisava os long-plays debruçado sobre a prateleira que continha a reduzida seção roqueira.

- É, cara, pelo jeito não tem nada interessante nessa espelunca - concordou o Wilsão, cujo olhar acompanhava o movimento de minhas mãos sobre os discos.

- Vamos nessa, estamos perdendo tempo aqui. O negócio é ir direto pra Galeria do Rock - aconselhou o Duque, virando-se em direção à porta da loja e liderando a retirada do grupo de roqueiros.

- E, agora, por onde vamos? - questionou o Morcegão, cujo senso de orientação se restringia às ruas do Jardim Bonfigliolli e da Vila Gomes.

- Pô, é só quebrar a próxima à direita e caminhar mais um quarteirão. Eu sei, andei muito por aqui quando era office-boy - me apressei a falar, fazendo panca de conhecedor do pedaço.

- Lá vem o Claudinho com essa conversa de novo - resmungou o Morcegão, ganhando o apoio imediato do Wilsão: - Nem digo nada, nem digo nada.

- Haha, mas ele está certo, o caminho é esse mesmo, - disse o Duque - a 24 de maio tá bem pertinho.

O curto trecho que nos separava da rua 24 de maio foi rapidamente vencido. Logo nos deparamos com a grande galeria onde inúmeras lojas de artigos ligados ao rock se espalhavam por vários pisos. Headbangers, punks, góticos, rockabillies e até carecas, todos podiam encontrar discos dos seus grupos favoritos nos corredores daquele centro comercial alternativo. Os cabeludos, sempre mais numerosos, possuíam um número de opções maior. Já os topetudos tinham que se contentar com apenas uma loja especializada na música dos primórdios do rock.

Com o Wilsão à frente, subimos pela escada rolante para o primeiro andar da galeria. Depois, caminhamos altivos até o final do corredor, onde estava localizado nosso destino naquela tarde. Afinal, apesar de mantermos o respeito naquele espaço frequentado por tantas tribos, era importante deixar clara nossa condição de roqueiros. A loja era uma legítima “Disneylândia” para admiradores do rockabilly. Pôsteres pendurados nas paredes, camisetas estampadas com fotos de bandas e músicos dos “fiftie’s”, um ou outro livro e discos, muito discos para o deleite de qualquer topetudo.

Aparentando quase quarenta anos, o dono da loja, um sujeito de cabelos e bigode de um louro quase ruivo, nos recebeu de forma simpática e logo entrou num animado papo com o Duque e o Wilsão. O assunto, inevitavelmente, era o rock’n’roll. Eu, sem perder tempo, me entreguei ao prazer de revirar as gôndolas da loja, procurando algo que ainda não sabia o que era. Meus dedos agiam de forma sincronizada, deixando os discos ao alcance do meu olhar. A avaliação era rápida. “Huuum, esse é bacana, mas tá muito caro. Esse outro eu tenho. Caraca, um lp do Pelvis”, comemorei, pinçando um disco do grupo de rock argentino.

- Morcego, olha esse aqui. É daquele grupo argentino, o Pelvis.

- Pelvis, nunca ouvi falar. Que eu saiba argentino só entende de tango.

- Deixa de ser zélão, você está por fora. Vou chamar o Duque - disse, virando-me para o amigo roqueiro, ainda envolvido na conversa com o dono da loja. - Duque, chega aí, dá uma dica pra gente.

O garoto pediu licença ao dono da loja, deixando-o só com o Wilsão. Em seguida, veio ao nosso encontro.

- Porra, o tiozinho manja pra cacete de rock - comentou o rapaz com ar admirado quando chegou mais perto.

- Duque, o que você acha desse disco aqui? É daqueles argentinos do Pelvis. São eles que cantam aquela música Frívola, não é?

- É, são eles mesmos. Fazem um som bem bacana, é em espanhol, mas é bem legal, diferente.

- Te falei, Morcego. Bem, mas você ainda é muito novo pra saber das coisas - disse, provocando o garoto, que se limitou a responder com uma careta de desprezo.

Separei o disco num canto e continuei o garimpo. “Quem sabe encontro alguma coisa do Buddy Holly”, meditava enquanto analisava os long-plays que passavam diante dos meus olhos. Sem sucesso na nova busca, resolvi consultar o proprietário.

- Você tem aí alguma coisa do Buddy Holly? Faz tempo que estou procurando alguma coisa dele.

- Sim, sim, tenho uma coleção muito legal. Só que são fitas, não discos. São seis fitas com praticamente toda obra dele, afinal, ele morreu cedo.

- Poxa, legal!! E quanto custa?

O dono da loja sinalizou o preço com os dedos das mãos.

- Caramba, é muito caro. Não consigo comprar agora, não. Quem sabe, depois junto uma grana - lamentei, decepcionado.

A exploração daquele paraíso do rock durou ainda mais uma hora. Além do bom papo do proprietário, outros rockers apareceram animando a conversa. A decisão de ir embora só foi tomada quando o Wilsão lembrou que a hora do ‘rush’ estava próxima.- Puts, é mesmo! Melhor ir embora, senão vamos ter que pegar o busão apinhado de gente, com neguinho pendurado na porta - concordou o Morcego, logo após o comentário do Wilsão.


Rockabilly à argentina


Olá, amigos! Neste oitavo capítulo do livro, alguns jovens roqueiros do Bonfigliolli fizeram uma garimpagem nas lojas do centro de São Paulo em busca de discos que enriquecessem o acervo da turma. Entre os achados dos personagens estava um disco do grupo argentino Pelvis, que fez sucesso no circuito rockabilly no final da década de 80 e no início da década de 90. Por esse motivo, fui até o YouTube e, depois de uma árdua procura, selecionei um vídeo para que vocês conhecessem um pouco mais do rock’n’roll feito por nossos vizinhos.
http://www.youtube.com/watch?v=zsiruO-HLC8&feature=related




Grande abraço!

quarta-feira, 23 de setembro de 2009

Na mira da chacota (Capítulo 7)

Os bancos espalhados pelo pátio da escola estavam lotados. Garotas conversavam animadas, divididas em pequenos grupos, enquanto os meninos mais novos jogavam futebol com uma bola improvisada, feita do pote plástico de um iogurte de morango, cujo conteúdo fora consumido minutos antes por algum dos jogadores. Num canto, dois rapazes com os semblantes preocupados corriam para fazer a lição de casa atrasada, levando muitas vezes os olhos ao relógio redondo preso à parede sobre o balcão da lanchonete, onde quase duas dezenas de estudantes se acotovelavam para comprar um pedaço de pizza ou um copo de refrigerante.

Muitos amores platônicos também desfilavam por ali, podendo ser logo identificados pelos olhares apaixonados que atravessavam o recinto. Havia ainda os poucos, ou pouquíssimos, casais de felizardos que desfilavam de mãos dadas e, vez ou outra, trocavam beijos discretos, acatando os limites impostos pela escola, cuja direção, apesar de liberal, não permitia exageros. Aquele, sem dúvida, era o melhor momento do dia. Quinze rápidos minutos em que paixões nasciam, sonhos morriam, tarefas eram finalmente finalizadas, reputações eram arrasadas e muitas rixas consolidavam-se, ganhando às vezes uma gigantesca dimensão.

Para mim, o recreio também era um momento especial, apesar do turbilhão de emoções que costumava me dominar durante aqueles quinze minutos. Eu vivia uma fase de grande popularidade, algo que nunca experimentara antes. O topete e a jaqueta de couro tinham me tirado do anonimato, me elevando à condição de um dos caras mais conhecidos da escola, despertando tanto admiração como desprezo. Havia até um grupo de meninas da quinta série que me adorava. Lógico, eu ficava orgulhoso, mas não valorizava muito aquele fã-clube quase infantil. “Minha nossa, são muito novas! Vão queimar meu filme com as meninas mais velhas”, costumava pensar, lembrando preocupado dos insistentes telefonemas que uma delas andava fazendo para minha casa. No entanto, além de ser admirado, eu também admirava à distância, principalmente as madeixas castanhas da bela Mariana, uma menina da sétima série de pele morena, sorriso fácil e corpo formoso, que me fazia sair apressado da classe toda vez que o sinal batia avisando o início do recreio. Infelizmente, ela e suas amigas - também belas - viviam cercadas pelos caras bacanas do colegial, muitos dos quais já iam dirigindo o próprio carro para a escola. Esses mesmos caras, aliás, eram a causa da minha falta de ânimo em diversos intervalos. Desde aquele frio dia de inverno em que decidira adotar o visual rockabilly em tempo integral, havia me tornado o alvo preferido da chacota daquela turma de garotos mais velhos. Situação que em nada me agradava.

Por todos esses motivos, minha atenção estava um bocado dividida enquanto atravessava o pátio conversando com o Gabriel Galante. Minhas palavras respondiam as perguntas do colega de classe, ao mesmo tempo em que meus pensamentos remoíam a já costumeira zombaria e meus olhos vasculhavam o local em busca da charmosa morena que elegera como musa.

Logo localizei a Mariana, perto de uma das mesas, envolvida em um animado bate-papo. Mas passei reto e fui me sentar no longo banco de concreto que delimitava o fim do pátio. Por ali já estavam outros dos meus colegas da oitava série: o Nasser, o Everaldo e o Saulo.

O Nasser - um sujeito simpático, filho de professor universitário, que se esforçava para ocultar da turma sua essência ‘cdf’ - contava que não estaria mais na escola no próximo ano. Seguindo os passos da irmã e o desejo dos pais, pretendia fazer o colegial no Santa Cruz, uma tradicional e renomada escola de São Paulo.

- Eu também vou sair. Vou pro Palmares - contou o Everaldo, galã da classe e sobrinho de um magnata da televisão paulista, cujo cabelo castanho nunca despenteava e com quem, apesar das diferenças, eu me dava muito bem.

O êxodo, contudo, não se limitaria aos dois, já que o Gabriel e o Saulo também pretendiam mudar para outro colégio, o Galileu Galilei. Só eu, o único que realmente morava em São Paulo, continuaria por ali. Todos os outros, habitantes dos condomínios elegantes da região, iriam migrar para as escolas paulistanas. Na verdade, eu não compartilhava com eles do desejo de mudar de colégio, só lamentava que meus melhores amigos fossem se espalhar pela cidade.

A conversa seguia animada com as projeções para o ano seguinte, quando uma turma do colegial sentou-se alguns metros ao lado, no mesmo banco. Senti um frio na barriga e tentei permanecer impassível, sentado e proseando com meus amigos. “Caralho, lá vem esses babacas encher o saco”, imaginei certeiramente, pois logo a turma de garotos mais velhos me elegeu como alvo da gozação naquele intervalo.

O líder das brincadeiras era sempre o mesmo sujeito, o Ronaldo. Cabelo preto liso, pele morena bastante bronzeada, olhos castanhos, um grande nariz e quatro ou cinco centímetros a mais do que eu - devia ter pouco mais de um metro e setenta - compunham a figura daquele garoto de dezesseis anos, por quem eu nutria uma grande antipatia. Naquela manhã, não foi diferente. O cara, imitado por outros dois rapazes, dobrou as barras da calça até pouco abaixo do joelho, deixando a canela à vista. Em seguida, mexeu no cabelo, construindo um tosco topete. Acompanhado pelos risos dos amigos, falou em voz alta: - Pronto, agora eu já virei um rooossscabillyyy, tenho uma calça pra pular brejo e um topete chiqueeeee...

O sangue subiu à minha cabeça. Pensei em avançar sobre o petulante garoto, mas fui acalmado pelo Nasser: - Deixa pra lá, Claudinho. Você sabe que esses caras são babacas mesmo.

- É, não liga. Você sabe que o Ronaldo só quer ver o circo pegar fogo - reforçou o Gabriel Galante. - O cara é folgado mesmo.


Rangendo involuntariamente os dentes, tratei de permanecer sentado, com os olhos mirando em frente, sem focar nada, só vendo um emaranhado de meninos e meninas espalhados pelo pátio. As risadas de deboche, entretanto, ainda penetravam meus ouvidos de forma cortante.

terça-feira, 22 de setembro de 2009

James Dean


Elvis, Jerry Lee, Carl Perkins, Chuck Berry e outros pioneiros do rock provocaram uma verdadeira revolução no comportamento da garotada da década de 50, mas talvez a principal fonte de inspiração desses jovens e adolescentes tenha sido outro personagem, o ator James Dean, falecido em 30 de setembro de 1955, justamente quando a semente do rock’n’roll começava a germinar.
Interpretando personagens desajustados e amargurados, Dean cativou o público norte-americano e acabou transformado em um verdadeiro ícone daquele período. O jovem astro, que faleceu com apenas 24 anos, também ajudou a popularizar o “visual” que a partir da década de 80 seria resgatado pela comunidade rockabilly: topete, camiseta branca, jaqueta de couro com a gola em pé e calça jeans surrada com as barras dobradas.
Quem quiser conhecer um pouco mais sobre o ator, pode conferir dois vídeos que encontrei no You Tube - sempre ele -, ambos relativos ao filme Rebel Without a Cause, que no Brasil ganhou o nome de Juventude Transviada. O primeiro é o trailer original da obra (
http://www.youtube.com/watch?v=cAlzg0S51GY), já o segundo mostra uma passagem famosa, na qual “Jimmy” enfrenta um dos seus adversários (http://www.youtube.com/watch?v=uaIq234nL04). Vale ressaltar que esta produção, na qual Dean contracenou com Nathalie Wood (foto acima), ainda não havia estreado nos cinemas quando o ator colidiu com seu porsche num cruzamento da Califórnia.
Grande abraço!

terça-feira, 8 de setembro de 2009

Talibãs do rock (Capítulo 6)

Vindo ao nosso encontro, o Nique desceu rapidamente os seis degraus que separavam a porta da casa de seus pais da pequena garagem, vazia naquela hora da tarde. Sob o braço, trazia uma pilha de discos.

- Olha aí, Tieta. Vê se acha os discos que você tá procurando. Devem estar entre esses aqui. Eu não vou ficar procurando pra você, né meu? - disse o dono da casa, passando os LPs para o amigo roqueiro.

- Valeu, Nique. Eu quero achar aquele do Cramps, o primeiro do Stray Cats e mais alguns aí pra gravar uma fita pra Pimentinha - emendou o Tieta, acolhendo os discos entre as mãos e se alojando sobre o degrau inicial da escada para realizar a seleção.

Além do anfitrião e do Tieta, estávamos em mais quatro pessoas: eu, o Demente, o Morcegão e o Wilson. Apesar de morar na casa ao lado, o Júnior Neguinho estava ausente.

- Esta hora, o Neguinho deve estar andando pela Faria Lima, rodando um envelope na ponta do dedo - comentou o Morcegão.

- Ou então tá enfurnado num fliperama, matando o trampo. Office-boy adora essas merdas dessas máquinas - destacou o Wilson, sentado sobre a lajota fria que revestia o piso, com as costas apoiadas numa das paredes da garagem.

- Porra, não é assim, não. O Neguinho dá um trampo danado. De manhã cedo ele vai pendurado no busão até o trabalho, lá em Pinheiros. Anda pela cidade o dia todo, levando envelope pra cima e pra baixo, e à noite ainda vai pra escola. Não é moleza, não - defendeu o Nique.

- Ah, mas pode ter certeza que pelo menos umas duas partidas de fliperama ele joga todo dia - argumentou o Wilson, defendendo seu ponto de vista.

- É, talvez, sei lá - desistiu o Nique, enquanto eu achava uma brecha pra contar minha experiência no assunto.

- Eu também já fui office-boy - disse orgulhoso, sem esperar a enxurrada de críticas que viria em seguida.

- Conta outra, Claudinho. Você é mó playboy, nunca viu um trampo na frente - me desancou o Demente.

- Mentira, já trampei sim, quando eu e o meu irmão ficamos de recuperação, uns dois anos atrás. Meu pai fez a gente trabalhar de office-boy, cada um pra um tio.

- Assim não vale, é trampinho café com leite, com o titio riquinho.

- Se liga, zélão. Andava o Centrão todo pagando contas pro meu tio, levando documentos e encarando fila de banco.

- Não boto fé, não. Você é mó pleibas.

- Foram só dois meses e meio, durante as férias, mas que eu trampei, trampei.

O debate teria durado mais um bom tempo caso o Tieta não tivesse feito uma importante descoberta em meio aos discos emprestados pelo Nique.

- Porra, Nique, que droga é essa aqui?! Um disco do Bon Jovi.

- Caralho, ninguém nasce rockabilly. Eu já escutei outras coisas e você também, que eu te conheço faz uma eternidade - defendeu-se o Nique.

- Mas Bon Jovi, música de cabeludo perobo!?

- Passa essa porcaria pra cá - falou o Nique, irritado, pegando o disco das mãos do Tieta. - Quer saber... - continuou o anfitrião, lançando um olhar oblíquo pro resto da turma - eu quero que esses cabeludos de boutique se fodam.

As mãos ágeis do garoto arrancaram a bolacha de vinil de dentro da embalagem de papelão, que, aliás, foi arremessada a metros de distância. Em seguida, as duas mãos seguraram com firmeza o disco e o conduziram de encontro ao joelho do topetudo. A joelhada quebrou o LP em vários pedaços, que espalharam-se pelo piso da garagem, provocando gritos de regozijo entre a turma de rockabillies. O Nique, no entanto, ainda não estava satisfeito. Por esse motivo, os saltos de suas botas esmigalharam vários dos pedaços que enfeitavam o chão.

- Animaaal, é isso aí, Nique - comemorou o Demente.

- Espera aí, que eu já volto - bradou o garoto, subindo a escada e sumindo dentro da casa.

- Caralho, o que ele foi fazer? - perguntou o Morcegão, enquanto nos entreolhávamos, ansiosos pelo retorno do nosso companheiro.

Não demorou muito para que ele surgisse, trazendo uma nova leva de discos sob o braço.

- Achei mais uns pra gente detonar. Tieta, qual você quer: Kiss, Titãs, Iron Maiden, Paralamas ou Queen?

- Passa o Iron Maiden pra cá - respondeu prontamente o rapaz que havia acendido o estopim da turma.

- Eu já volto, vou pegar mais alguns lá em casa - se apressou em dizer o Morcegão, correndo até o sobrado em que morava na mesma rua e reaparecendo pouco depois com mais discos.

- Olha aqui, achei um do Information Society, um do Legião, um do Noel, um do Zigue Zigue Sputnik, um do Roberto Carlos e até o internacional da novela Vale Tudo. Também tem uma fita do Oingo Boingo e outra do Pet Shop Boys.

- Esse do Roberto Carlos não é do seu pai, não? - indaguei preocupado com a possibilidade de nosso momento de catarse vitimar a propriedade de outras pessoas.

- Bem, e se for, o que é que tem? O Morcego só vai estar fazendo bem pro pai dele - filosofou o Wilson, com a pronta aprovação do Morcegão.

- Tá bom, então deixa eu pegar o Information Society - concordei, ansioso pelo momento de despedaçar um dos LPs. Grunhindo como homens da caverna, em poucos instantes destroçamos todos os discos, forrando o piso da garagem com pequenos cacos pretos. E mesmo depois de tudo destruído, continuamos entoando, no limite da garganta, um mantra ensandecido que faria corar de inveja qualquer fanático religioso: - Rock’n’roll, rock’n’roll!!!

Stray Cats, Cramps e outros

Olá, pessoal! Fui ao YouTube e fiz uma lista de vídeos com algumas das bandas citadas no sexto capítulo do livro. Entre os grupos preferidos dos personagens estão o Stray Cats (http://www.youtube.com/watch?v=YoaazVGPtuQ), responsável por popularizar o rockabilly na década de 80, e o The Cramps (http://www.youtube.com/watch?v=-G8kBS7BLHI&feature=related), que cunhou o termo psychobilly ao introduzir uma expressiva dose de psicodelia no tradicional rockabilly.
Já entre as bandas que tiveram seus discos transformados em cacos pela turma de roqueiros do livro estavam o Bon Jovi (http://www.youtube.com/watch?v=GccfzxHIXaY) e o Oingo Boingo (http://www.youtube.com/watch?v=tNbCQr_ClL8), dois grupos que fizeram bastante sucesso na segunda metade dos anos 80. Confiram!
Grande abraço!!!

segunda-feira, 31 de agosto de 2009

O topetudo vai à aula (Capítulo 5)

Atravessei o portão de entrada escoltado por quase uma dezena de olhares surpresos. Os olhos vidrados, o queixo caído e a boca entreaberta de Dona Zefa, a bedel que recebia os alunos, traduziam o espanto geral. A senhora simples, acostumada a alternar momentos de extrema simpatia com broncas ásperas, sequer conseguiu articular uma resposta quando a cumprimentei.

Percorri o longo corredor que levava às classes, experimentando uma situação diferente, afinal, pela primeira vez em toda minha vida escolar, eu era o centro das atenções. Risos, cochichos, olhares espantados e comentários sarcásticos brotavam no rastro das minhas pegadas. Segui andando tranquilo, cumprimentando com a cabeça os conhecidos que encontrava pelo caminho, até avistar o Rato na porta da classe. O rosto branco, salpicado por sardas e decorado por uma cabeleira lisa, de um castanho bastante claro, tinha o sorriso de gozação característico do sujeito. Parei por um instante, ciente da zombaria que me aguardava alguns passos adiante, e em seguida retomei minha trajetória.

- Espera aí, deixa eu adivinhar, você veio de moto ou viu um fantasma? - brincou com ar bonachão o descendente de iugoslavos.

- Engraçado, hein? Deixa de ser zélão, tô no visual rockabilly, não tá percebendo?

- Hahaha, tô brincando. Eu sabia que você curtia essa história de rockabilly, mas não tanto assim. Tá bacana, tá bacana!

- Rockabilly não é só música ou dança. É um estilo de vida que te acompanha vinte e quatro horas por dia - respondi com tom professoral, recitando a bela frase que ouvira de um amigo roqueiro.

Após cumprimentar o Rato, entrei na classe, feliz por ter usado a pomposa frase logo no primeiro diálogo do dia. Algumas meninas que conversavam animadamente na frente da classe viraram o rosto para me ver. Um sorriso simpático e sincero enfeitava o semblante mestiço da Marília, dona de cabelos negros bastante lisos, cortados pouco acima dos ombros.

- Caramba, você ficou louco!!! Que coragem!!! - falou a sempre extrovertida Marília quando me aproximei do grupo.

- É, resolvi adotar o visual - respondi meio encabulado, sentindo minhas bochechas corarem.

- Você é muito louco!!! O que seus pais disseram, cara?

- Não curtiram muito, não. Minha mãe arregalou um olhão enorme e meu pai falou que não era dia de festa.

- Imagino!!! - comentou a Marília antes de cair numa gostosa risada.

- Nossaaa, ficou muuuito legaaal!!! Onde você arranjou essas roupas todas? - perguntou a Camila, entrando na conversa.

- A jaqueta de couro é antiga, era de um tio quando ele era moço, e a cacharrel tava aposentada lá em casa, num canto do armário.

- E essa fivelona?

- Meu pai ganhou de algum amigo muito tempo atrás e eu acabei dominando.

- E você agora vem todo dia assim pra escola? - perguntou a Tati, a mais dondoca das três, contraindo as sobrancelhas loiras sobre os belos olhos azuis.

- É, venho sim. Rockabilly não é só música ou dança. É um estilo de vida que te acompanha vinte e quatro horas por dia - respondi com ar canastrão, feliz por ter uma nova oportunidade para usar minha frase preferida.

Segui caminhando entre as carteiras até o meu lugar, localizado no lado oposto da classe, perto de uma das janelas. Antes de sentar, estiquei a mão para cumprimentar o Nasser, um amigão que meu pai apelidara de Habib, numa alusão à sua origem libanesa. Ele, como meus principais amigos da escola naquela época, o Gabriel e o Everaldo, preferia ignorar minhas manias exóticas, agindo como se nada de diferente estivesse acontecendo. O resto dos alunos, no entanto, estava alvoroçado com a novidade. Ouviam-se cochichos e risadinhas por toda a sala quando o sinal tocou avisando o início da primeira aula. A excitação da turma só diminuiu quando a professora entrou na classe.

- Bom dia, vejo que estão bastante animados - comentou a professora, enquanto dirigia-se para a mesa na frente da sala sem olhar para os lados. Apressada, a jovem professora, que aparentava menos de trinta anos, colocou os livros que carregava sobre a mesa. Depois, pegou um deles e folheou até encontrar a matéria daquele dia.

- Bem, temos muito trabalho pela frente pessoal, espero que tenham feito os exercícios que passei na aula passada - falou a educadora, ainda com o olhar mergulhado no livro de matemática.

Pairava na sala um ar de expectativa. A turma trocava olhares, ansiosa para ver a reação da professora quando visse meu topete. Dona Valéria ergueu os olhos castanhos escuros e apoiou o queixo sobre a mão esquerda, provavelmente pensando em como iniciaria os estudos naquele dia. O ar pensativo, entretanto, foi logo substituído por uma expressão de surpresa. A cabeça da professora parou, levemente inclinada para a direita, fitando o canto da classe onde eu estava.
Por alguns instantes, as sobrancelhas negras permaneceram contraídas junto ao topo do nariz e os lábios, cerrados com firmeza, tornaram-se mais finos que o habitual. Uma suave sacudida de cabeça tirou a educadora do breve momento de transe, provocando algumas risadas entre a turma.

- Bem, vamos ao trabalho - disse a professora, afastando a cadeira e levantando-se. Enquanto ela escrevia na lousa a primeira tarefa do dia, aproveitei para dar uma última ajeitada na gola do casaco, pois sabia que o dia seria longo.

terça-feira, 25 de agosto de 2009

Assumindo o topete (Capítulo 4)

O despertador tocou de forma estridente vinte minutos antes do habitual. O som alto me acordou imediatamente. Minha reação, no entanto, foi diferente do costumeiro. Como todos os dias, estiquei o braço até o radiorrelógio, mas naquela ocasião não apertei o botão soneca, abrindo mão do sono extra naquela fria manhã, no início do inverno de 1989. Meus dedos tatearam o aparelho até encontrar o pino que desligava o despertador. Em seguida, sem embromação, joguei a coberta para o lado e levantei determinado. Estava ansioso. Tinha tomado uma decisão importante na noite anterior: a partir daquela semana ia adotar o visual rockabilly permanentemente, inclusive na escola.

Sonolento, andei até o armário, abri as portas de madeira e separei meu traje para aquele dia: camiseta branca, blusa cacharrel azul, calça jeans surrada, um par de meias brancas e um par de sapatos pretos. Também peguei outro item indispensável: o cinto negro equipado com uma enorme fivela dourada de formato oval, no melhor estilo country. Empilhei as roupas no antebraço esquerdo e segurei os sapatos com a mão do mesmo lado. Segui então até a porta, pisando com os pés descalços sobre o carpete cinza. Girei a maçaneta de maneira extremamente cuidadosa, evitando fazer barulho. A casa ainda estava silenciosa, vivendo seus últimos minutos de tranquilidade antes do despertar da numerosa família. As janelas fechadas permitiam que apenas alguns poucos raios de luz solar entrassem por suas frestas. Temendo chamar atenção, optei por não acender a lâmpada do corredor. Passadas leves, motivadas por um enorme sentimento de culpa, me conduziram pelos poucos metros que separavam o dormitório do banheiro. “Caramba, não tô fazendo nada de errado”, pensei, incomodado com a situação.

Meu pé direito, ainda quente do calor das cobertas, tocou o piso frio do banheiro. Um arrepio gelado se espalhou pela minha perna, fazendo com que me arrependesse de ter deixado o chinelo dentro do armário. “Caralho, que chão gelado!” Acelerei o passo, andando sobre as pontas dos pés, e fechei a porta do banheiro com o mesmo cuidado que tivera ao sair do quarto. Logo em seguida, coloquei o sapato no chão, ao lado de um banco de plástico, branco, sobre o qual depositei minhas roupas. Pulei, então, para o pequeno tapetinho estendido diante da pia. O pedaço de pano acolheu calorosamente meus pés, livrando-os do gélido contato com o piso.

Diante de mim, refletido no espelho, estava um rosto amassado, ornado por uma cabeleira revolta, principalmente no topo da cabeça, onde os fios longos se entrelaçavam desalinhados. A imagem sumiu quando abri a porta do espelho para pegar a escova e o creme dental. Escovei os dentes com pressa. Depois, meti-me dentro do boxe, novamente procurando um tapetinho, dessa vez de borracha. Tomei uma ducha rápida e vesti as roupas. Em seguida, me preparei para a etapa principal, a produção do topete.

Munido de uma escova de cabelo, um pote de gel e um secador, comecei a esculpir o penteado diante do espelho. O processo era o mesmo dos dias em que ia para a Cave. Primeiro, peguei a escova e levantei a longa franja, usando o secador para mantê-la no lugar. “Saco, esse cabelo não para!”, resmunguei baixinho, irritado com a trabalheira.

Quando o cabelo estava na forma desejada, ou quase, pois nunca ficava satisfeito, abandonei o secador sobre a pia e peguei o pote de gel. Enfiei alguns dedos dentro do recipiente e tirei um pouco da gosma azulada. Espalhei o conteúdo pelas mãos com uma leve fricção. Depois, comecei a passá-lo pelo topete com movimentos cautelosos, evitando desmanchar a frágil formação dos fios. Terminei de esculpir o penteado manualmente, mas antes de considerá-lo pronto, decidi dar mais uma rajada de secador, esperando que o ar quente ajudasse a fixá-lo. Por fim, passei a escova sobre o cabelo da lateral da cabeça. Cortado com máquina dois, bem curtinho, ele pouco se modificou.

Observei o penteado refletido no espelho e me dei por satisfeito. Infelizmente, minha barba rala não permitia que ostentasse outro item importante no visual de um rocker, a costeleta. Era um pouco frustrante, é verdade, mas não havia nada a ser feito. Só restava esperar que com o passar dos anos os fios ganhassem força e esse problema fosse solucionado.

A casa já despertava quando terminei a produção. Ouvi minha mãe passando apressada pelo corredor, indo provavelmente até a padaria para comprar os pães que a família comeria no café da manhã. Assim que escutei a porta da frente se fechar, sinalizando sua saída, decidi ir para o quarto. Entrei no cômodo acompanhado pelo sentimento de culpa que pulara da cama comigo naquela manhã. Fechei a porta rapidamente, evitando encontrar meus irmãos ou meu pai. Como estava adiantado, coloquei um cassete do Jerry Lee Lewis no toca-fitas para passar o tempo. Lá fora, começava o burburinho de mais um atribulado dia.

Vesti a jaqueta de couro diante do grande espelho retangular pendurado na parede. Fazendo panca de James Dean, levei as mãos até a gola do casaco, deixando-a em pé, com ar rebelde. Fitei meu reflexo, avaliando o visual. Faltava algo... Huuum!!! Talvez o ar melancólico e a cara indiferente do ator de Juventude Transviada.

Pelas pequenas caixas acústicas do toca-fitas, ecoou Wholle Lotta Shakin’ Goin’ On. Ensaiei alguns passos de rock’n’roll, entusiasmado com a música do ‘Matador’. Depois peguei a mochila da escola para conferir se todos os livros estavam ali.

Recém-chegada da padaria, minha mãe bateu na porta, me lembrando do horário.

- São sete horas, não vá se atrasar.

- Tá bom, mãe. Já vou, já tô pronto - respondi do outro lado da porta, com um sorriso no rosto, me divertindo com a mania materna de sempre adiantar o relógio em dez minutos.

Terminei de ajeitar o material, fechei o zíper da mochila e a pendurei no ombro direito. Antes de sair do quarto, parei um instante para tomar coragem. “Qual será a reação do pessoal?” Abri a porta sem pressa. Segui com passos hesitantes pelo corredor e depois pela escada. Minha mãe me olhou com cara de espanto, como se visse um extraterrestre, assim que transpus o umbral da porta da copa.

- Onde você vai desse jeito? - disse, mirando com os grandes olhos castanhos o indiscreto topete que se erguia sobre minha cabeça.

- Pra escola, ué. Onde mais eu poderia ir a essa hora?

- Mas com essa roupa?! Você não tem que usar uniforme?

- Não, faz tempo que ele não é mais obrigatório. E o que é que tem de mais ir assim?

Até então concentrado na leitura do jornal, meu pai virou o rosto para ver o que havia de tão anormal.

- Hoje não é dia de festa. Essa roupa não é apropriada pra ir à aula - disse com tom firme.

- Acho que não vão te deixar entrar. Onde já se viu ir desse jeito pra escola - indignou-se minha mãe.

- Não, não tem problema. Eles deixam sim - resmunguei irritado.

- Bom, você é que sabe, mas essa história não vai dar certo - lamentou minha mãe.

Os traços na face de meu pai denunciavam sua insatisfação, mas ele não falou mais nada. Um silêncio constrangedor encobriu a mesa, onde também estavam dois dos meus irmãos, o João e a Isabela.

Sentei-me, enchi a xícara de café e leite e passava manteiga numa fatia de pão quando meu outro irmão apareceu para dissipar a bruma de silêncio que nos envolvia.

- Poxa, você viu um fantasma? - comentou com um sorriso sarcástico estampado no rosto, tirando sarro do meu topete.

Lancei em sua direção um feroz olhar de primogênito, repleto de significados nada amigáveis. Um ano e meio mais novo, o Mathias adorava me provocar e conforme crescia menos se incomodava com minhas atitudes intimidatórias. Balancei a cabeça, como se lamentasse o comentário, mas deixei passar a provocação. Sabia que não seria a última do dia.

Jerry Lee Lewis


Olá, pessoal! No capítulo que postei hoje, o protagonista Claudinho escuta um som do músico Jerry Lee Lewis, um dos pioneiros do rock. Na foto ao lado, o roqueiro aparece durante uma apresentação na década de 50, período que foi o auge de sua carreira. Vale ressaltar, aliás, que Lewis estará no Brasil durante o próximo mês. Ele se apresentará no Credicard Hall, em São Paulo, na noite do dia 18. Esta será uma grande oportunidade para conferir ao vivo uma das lendas vivas desse estilo. Para terminar este post, segue abaixo um link para um clip de época da música Wholle Lotta Shakin’ Goin’ On:


Grande abraço,

Pedro

segunda-feira, 17 de agosto de 2009

Um estranho no ninho (Capítulo 3/Parte 2)

Nosso destino naquela tarde de domingo era a já mencionada Cave, localizada na Henrique Schaumann, distante algumas quadras de onde estávamos. Se para os outros garotos aquele era um passeio habitual, para mim ele possuía uma excepcional importância, pois era a primeira vez que ia a uma danceteria. Estava ansioso, sem saber ao certo o que encontraria, mas sentia-me feliz por aquela virada na minha vida, já que não aguentava mais a incrível pasmaceira de meu dia a dia, com tediosas voltas de bicicleta pelo bairro e infantis peladas disputadas no meio da rua.

A danceteria podia ser identificada de longe devido à grande concentração de pessoas existente diante dela. Situada quase na esquina formada pelo encontro da Henrique Schaumann - uma larga avenida, com oito faixas de tráfego - e a rua Cardeal Arco Verde, a Cave tinha como principal símbolo um carrão antigo erguido sobre um poste de ferro, vários metros acima do nível da rua.

Com o olhar atento para todos os detalhes, entrei na danceteria acompanhado por meus amigos. O ambiente, apesar de novo para mim, parecia familiar, provavelmente porque já vira muitos lugares parecidos com aquele em filmes e telenovelas. Uma grande pista de dança com formato circular ficava no centro da casa, cerca de um metro abaixo do nível do piso que a rodeava, repleto de mesinhas onde garotos e garotas proseavam. A escuridão ajudava a realçar o colorido das luzes que iluminavam a pista. E o som, muito alto, atrapalhava as conversas.

O local estava cheio, mas não lotado. Logo conseguimos um canto próximo ao balcão do bar para conversar, por mais difícil que fosse, e observar o movimento. Habituado ao ambiente burguês da Granja Viana, olhava com certa estranheza para os frequentadores da casa, principalmente para um grande grupo de garotos e garotas que faziam uma dança coreografada no meio do salão ao som de black music.

- Aqui rola principalmente house, black e pop rock, mas também toca um rockabilly animal, você vai ver - disse o Wilsão, atiçando minha curiosidade, afinal fazia dias que estava ouvindo aquela história de rockabilly.

Meu conhecimento sobre o tema até aquele momento era restrito a três discos: um do Bill Halley - que encontrara na coleção de vinis do meu pai -, uma coletânea com clássicos antigões do rock’n’roll e um lp do Elvis Presley. Esses dois últimos estavam em casa desde os meus nove anos de idade. O disco de clássicos era meu. Já o do Rei do Rock pertencia a um dos meus irmãos, o Mathias. Ambos haviam sido comprados durante um passeio ao shopping, quando meu pai parara em uma loja em busca de algum disco e, depois de muita insistência, deixara que também escolhêssemos um lp cada. Por que havíamos escolhido justamente aqueles dois vinis ainda era um mistério, mesmo após tantos anos.

Assim que a black music foi substituída pela house nas caixas de som, o Tieta nos incentivou a ir para a pista de dança: - Vamos dançar, galera, que ficar parado aqui não pega nada.

Após descer os degraus que nos separavam da pista de dança, formamos uma roda perto de um grupo com quatro garotas. Inicialmente inibido, aos poucos fui me soltando, tentando vencer a impressão de que todas as pessoas que estavam ali já haviam constatado minha total imperícia no quesito dança. “Deixa de história, Cláudio, ninguém tá nem aí pra você. Ninguém liga pro fato de você saber dançar ou não”, tentava me convencer, enquanto imitava os passos dos meus experientes amigos, procurando não fazer feio.

A essa altura o Tieta e o Nique já puxavam conversa com algumas meninas que dançavam ali por perto. Eu observava atentamente o bem sucedido avanço de meus novos amigos, admirado com a habilidade que demonstravam com o sexo oposto, principalmente porque eu não saberia sequer como abordar as garotas. “Porra, os caras são bons de papo”, pensava, observando a entusiasmada conversa que se desenrolava, inacessível, ao meu lado.

O suor já escorria por minha testa quando mudou a música que ditava o ritmo da domingueira. Finalmente chegara a hora do rockabilly, mas eu sabia que aquele som exigia um tipo de dança que, diferentemente do que acontecia até então, não permitia embromação. Ou você sabia dançar ou não. Por isso, saí do meio da pista e encostei num canto, acompanhado pelo Píter e o Wilsão. Nós, aliás, não fomos os únicos, pois a pista se abriu para os poucos que dominavam aquele antigo estilo de rock. Aproveitando-se da intimidade recém-adquirida com o grupo de garotas, o Tieta convidou uma delas para dançar. Imediatamente, Nique e Demente fizeram o mesmo. O senhor da pista, no entanto, era um outro garoto, que eu via pela primeira vez naquele preciso instante. Vestido como se vivesse nos anos cinquenta, o rapaz esbanjava habilidade nos rodopios com que conduzia sua parceira de dança.

- Quem é aquele cara ali, Wilsão?

- É o BB, conhecemos ele aqui, mas depois ficamos sabendo que ele é lá do São Domingos, um bairro colado no Bonfa. Ele já é rockabilly há algum tempo, tem um puta visual - respondeu o Wilson.

- É, e também dança pra caramba!

- É bacana, não é? Ele é gente fina, tá até dando umas dicas pra gente.

- Pô, muito louco! - Conclui, bastante admirado com a aparição daquele garoto cheio de estilo, que parecia saído de uma cena de “Nos tempos da Brilhantina”.

sexta-feira, 14 de agosto de 2009

Um estranho no ninho (Capítulo 3/Parte 1)

O estridente barulho da campainha ressoou pela casa sinalizando a presença de visitantes. Ainda com o cabelo despenteado, caminhei apressado até a janela do quarto. “Xiii, já deve ser o Wilsão”, pensei enquanto me debruçava no batente para ver quem havia chegado.

- Espera aí, já tô indo - gritei da janela do dormitório, no andar superior da casa, ao mesmo tempo em que sinalizava com a mão direita para que eles aguardassem.

- Deixa de ser lerdo, Claudinho. Vem rápido - retrucou o Wilson da calçada diante do portão, onde aguardava com mais quatro garotos.

- Tá bom, já tô descendo - respondi antes de me virar e seguir com passos rápidos até o espelho, em frente ao qual penteei o cabelo e dei uma última ajeitada na roupa. Em seguida, peguei sobre o criado-mudo o dinheiro que meu pai havia me dado para sair naquele fim de tarde e o enfiei na carteira preta que costumava carregar no bolso da calça. Afobado, ainda desliguei o rádio antes de abrir a porta do quarto e disparar escada abaixo.

- Pai, mãe, o Wilson tá aí, já vou indo - disse assim que me deparei com meus pais na sala, ao pé da escada.

- Vê se não volta tarde, que amanhã tem aula - falou minha mãe, enquanto meu pai recomendava juízo.

- Pode deixar, eu sei me cuidar - respondi, mandando beijos para ambos.

Enquanto corria para a porta de casa, ainda ouvi minha mãe perguntar para o meu pai se o Wilson e o resto da turma seriam boa companhia para mim. Não ouvi a resposta, pois a essa altura já estava fechando a porta, mas imaginei qual seria, afinal meus pais tinham uma certa implicância com o Wilsão desde a época em que tínhamos estudado juntos. O fato dele ter repetido de ano diversas vezes, inegavelmente, colaborava muito para essa desconfiança.

- Caramba, Claudinho, como você demorou! - cutucou o Wilsão no mesmo momento em que fechei a porta de casa. - Continua tranquilo como sempre, hein?

- Desculpa, não vi a hora passar. Tudo joia? - falei, esticando a mão para cumprimentá-lo.

- Beleza. Você já conhece o Nique, não conhece? - questionou meu amigo, apontando para um garoto magro, de estatura mediana e olhar muito vivo, cujo cabelo castanho claro estava cortado no melhor estilo “rabo-de-pomba”. Naquela época, aliás, esse penteado que deixava o cabelo cheio, com apenas uma estreita faixa bem curtinha na parte de baixo, estava bastante na moda.

- Só. Lembro dele lá da sua rua - respondi, tratando de cumprimentar o rapaz, que aparentava cerca de quinze anos.

Apontando os outros rapazes, o Wilsão continuou a apresentação da turma. Havia um sujeito forte, com cerca de um metro e setenta e cinco, pele bem morena, rosto arredondado e cabelos negros encaracolados, cujo apelido era bastante estranho: Tieta. Logo fiquei sabendo que aquela esquisita alcunha fora dada porque o garoto, de dezessete anos, era de origem nordestina, como a Tieta do livro de Jorge Amado e da telenovela que tanto sucesso fazia nas noites daquele ano de 1989. Entre os amigos do Wilsão também estava o Píter. Introspectivo e dono de traços orientais que deixavam clara sua ascendência japonesa, estava com dezesseis anos, assim como o outro rapaz que completava o grupo, o Denis Demente, um alemãozinho alto e forte, dotado de um proeminente nariz e de uma cabeleira loura bastante lisa, que lhe escorria pela testa. Todos estudavam no Julio Mesquita e, pelo jeito, já tinham prestado muitos serviços àquela escola, cujo ensino se estendia somente até a oitava série.

Seguimos rumo ao ponto de ônibus, localizado na margem da Raposo Tavares, sob a passarela de pedestres que ligava o Rolinópolis ao Bonfigliolli. Ainda desentrosado, participei pouco do animado papo travado entre os outros cinco garotos durante os cerca de quinze minutos de espera até que despontasse na estrada o ônibus que nos levaria a Pinheiros. Assim que ele parou, subimos pela porta traseira, como se fazia em São Paulo naquela época. O veículo não estava muito cheio, por isso resolvemos sentar antes da catraca, ali mesmo na parte de trás.

Quando o ônibus deixou a avenida Eusébio Matoso, ingressando na Rebouças, o Wilson levantou do banco e me chamou: - Vamos lá, Claudinho, vamos passar pra frente que o nosso ponto já tá chegando.

- Beleza, vamos nessa - respondi, enquanto me levantava e pegava a carteira, em busca do dinheiro para a passagem. Seguindo meu amigo, paguei o cobrador e passei pela catraca. O resto da turma, no entanto, continuou sentada tranquilamente no fundo do ônibus. “Ué? Pensei que eles fossem pra danceteria com a gente, não tô entendendo nada”, refletia, olhando com estranheza para a outra extremidade do veículo.

- Pô, Wilsão, os caras não iam com a gente pra Cave?

- Eles vão, só que vão nos encontrar mais tarde - disse de forma pouco esclarecedora meu antigo colega. Mesmo sem entender nada, balancei a cabeça como se tivesse compreendido a explicação.

Assim que o ônibus atravessou o cruzamento entre a Rebouças e a Henrique Schaumann, o Wilsão puxou a cordinha que pendia do teto do ônibus, fazendo com que soasse a campainha que sinalizava nossa intenção de descer no próximo ponto. O veículo reduziu a velocidade e, em seguida, freou. O rangido das portas se abrindo logo se fez ouvir. Primeiro, com passos lentos, desceu o Wilsão, depois foi a minha vez.

No mesmo momento em que o solado de borracha do meu tênis tocou o concreto da calçada, ouvi o motorista fazer uma queixa em voz alta e agressiva: - Molecada filha da puta! Além de não pagar a passagem, ainda atrapalha quem está subindo.

Sem conhecer o motivo da irritação do condutor, fiz um gesto interrogativo para o Wilsão, levantando os ombros e franzindo as sobrancelhas. Ele se limitou a apontar para o lado, onde, alguns metros à minha direita, os outros garotos nos aguardavam com sorrisos marotos. “Caramba, esses caras são loucos”, meditei, observando a cena inusitada sem saber que logo aquele tipo de situação se transformaria em rotina nas nossas saídas. Afinal, a tática era quase infalível. Quem havia pago a passagem pedia para o ônibus parar, aí os espertinhos se apressavam para escapulir pela porta traseira, respondendo com risos debochados aos impropérios do indignado cobrador.

- Haha, acho que o Claudinho nunca tinha visto ninguém descer pela porta de trás, galera - brincou o Wilsão, tirando risos do resto da turma.

- Só, olha a cara de espanto dele, parece que viu um fantasma. Mas não liga não, Claudinho, você acostuma - completou o Tieta, dando tapinhas amistosos no meu ombro.