quinta-feira, 25 de março de 2010

Um agitado passeio (Cap. 13/Parte 1)

Desliguei o telefone perplexo. O Wilson contara tantas novidades que eu custava a acreditar. Tinha passado apenas um mês fora de São Paulo, aproveitando as férias escolares em São Carlos, terra dos meus avós maternos. As mudanças, no entanto, eram tamanhas que faziam minha ausência parecer muito maior. A notícia mais surpreendente era sobre a House. Os rockabillies tinham sido, simplesmente, expulsos da casa pelos outros frequentadores.

- Como é que é? Você tá brincando? - exclamara incrédulo após receber a notícia do Wilson.

- É sério, os caras aproveitaram um dia em que estávamos em poucas pessoas para reunir um grupo grande e vir pra cima. Não teve jeito, era muita gente. Tivemos que cair fora.



- Poperôs filhos da puta! Que sacanagem! Por que os caras fizeram isso?



- Acho que eles estavam incomodados com a gente na área deles. Mas vai ter troco. Eles podem esperar.



A novidade me deixou chateado. Como meus amigos, eu gostava da House, especialmente das meninas que a frequentavam. Esse, aliás, talvez fosse um dos motivos que despertara a ira dos locais. Dirigindo os carros mais cobiçados da época, usando tênis e roupas de grife, eles não podiam admitir um grupo de roqueiros mal arrumados chamando atenção no pedaço deles. É verdade que o desprezo era recíproco, pois não havia como levar a sério pessoas que escutavam “Pup of the jam”.



Segundo o Wilson, a Cave tinha voltado a receber os rockers em suas domingueiras, assim como às sextas, quando uma das pistas da casa era reservada para os admiradores de rockabilly. Além da nossa turma, composta por jovens da região do Jardim Bonfigliolli, a casa noturna recebia agora muitos roqueiros de Taboão da Serra, que formavam a Fox Billy. Outro local que entrara no circuito era o Shopping Iguatemi, onde topetudos de diversos lugares de Sampa se reuniam nas tardes de sábado.



- Vamos lá hoje à tarde? O Nique, o Morcegão, o Júnior Neguinho e o Tieta também vão - convidou o Wilson.



- Mas ali só dá playboy! Os poperôs da House não vão estar por lá? O shopping tá bem na área deles.



- Alguns, mas não tem problema, vai ter bastante rockabilly nesse horário. Deixa de história, Claudinho.

***

Faltavam poucos minutos para as quatro da tarde quando cheguei à casa do Tieta. Topete ajeitado, calça jeans surrada, camiseta branca com as mangas viradas, botas pretas e um cinto com a tradicional fivela dourada me ajudavam a compor o visual. Devido ao calor, típico de fevereiro, levava a jaqueta de couro apoiada no ombro e segura por apenas dois dedos de minha mão direita. O Wilson chegou logo depois, no mesmo instante em que o Nique, o Júnior e o Morcegão despontaram no fim da rua, andando sem pressa nenhuma.


- Hiii, chegaram os maus elementos da Vila Gomes! - provocou o Tieta.
- Vamo lá, cambada! Vamo dar um rolê - gritou o Nique assim que se aproximou de nós, com jeito brincalhão e a mão direita já esticada para nos cumprimentar.
Saímos caminhando em direção à Praça Elis Regina. Ficava ali o ponto inicial da linha Vila Gomes - Jardim Miriam, nosso meio de transporte para o passeio vespertino daquele sábado. Demos sorte, pois havia um ônibus parado, esperando o horário para iniciar o próximo percurso. A porta traseira já estava aberta. O cobrador também ocupava seu posto, aguardando os primeiros passageiros enquanto o motorista acertava os últimos detalhes na cabine da empresa ao lado do ponto.


Entramos no ônibus fazendo a algazarra tradicional. Tieta e Wilson trocavam cômicas gozações, provocando o riso dos demais. O Nique, no entanto, ficou sério assim que viu um sujeito invocado sentado no último banco. Estatura mediana, ombros largos, braços fortes, cabelos castanhos suavemente revoltos, o moço lançava um olhar de desafio em nossa direção. Em seu rosto moreno, que permitia adivinhar uma idade por volta dos 30 anos, delineava-se um sorriso discreto e irônico. A palavra confusão parecia estampada naquela figura pouco amistosa.


- Júnior, me empresta um trocado para inteirar a passagem! Vamos sentar lá na frente pessoal.
Todos entenderam a mensagem do Nique. Um a um passamos pela catraca e nos espalhamos pelos bancos dianteiros, abandonando o costume de tentar descer, sem pagar, pela porta traseira.


- Conheço esse cara, é um gambé folgado pra caramba. Tá sempre louco pra arranjar encrenca - cochichou o Nique no meu ouvido.


Seguimos viagem sem bagunça, apenas batendo papo. Aproveitei para contar os detalhes de minha estada no interior. Afinal, aquela temporada de férias tinha sido muito legal. Um dos meus primos são-carlenses, o João Guilherme, me apresentara a uma série de pessoas. Muitas delas acabaram virando amigos. Passávamos as tardes no clube e à noite saíamos para passear. Nos finais de semana, munido de uma fita cassete repleta de sucessos do rock’n’roll, passava sempre por alguma festa. Cara de pau, pedia para que a tocassem e tirava alguma menina para dançar. Em pouco tempo, já era conhecido por boa parte dos jovens da cidade e até atraía o interesse de algumas garotas por meu tipo incomum. Isso, no entanto, não significava que tinha conseguido grandes feitos com o sexo frágil, pois a timidez ainda era um grande empecilho.


Deixei de contar para a turma uma outra experiência muito bacana. Tinha participado da redação de um livro com meu avô e meus primos, mas julguei que esse não seria um assunto muito interessante para o pessoal. Vovô escrevera o primeiro capítulo de uma história de suspense. Depois, o João Guilherme redigiu o segundo capítulo e eu, o terceiro. A ideia era que cada neto escrevesse um capítulo, levando o texto ao desfecho final, que ficaria sob a responsabilidade do vovô. Nós já tínhamos dado o empurrão inicial, mas o texto ainda deveria passar pelas mãos de meia dúzia de primos.


Minha narrativa foi interrompida, entretanto, por uma polêmica. O pessoal não conseguia acreditar que uma das turmas mais temidas de São Carlos, ao lado dos punks, era formada por fãs do Titãs. Eu também custara a crer naquela informação, mas o pessoal da cidade garantira sua veracidade. No calor da conversa sobre a excentricidade interiorana, esquecemos do policial invocado sentado no banco do fundo. O sujeito, no entanto, reavivou nossa memória quando o ônibus entrou na avenida Eusébio Matoso. Pagou o cobrador, passou pela catraca e permaneceu em pé, próximo de nós. Felizmente, a situação constrangedora durou apenas alguns metros, pois a parada em que desceríamos já era a seguinte. Levantamos e nos aproximamos da porta. O Morcegão puxou a cordinha que se estendia pelo teto do ônibus, informando nossa intenção de descer.


Saímos do ônibus assim que as portas se abriram no ponto localizado diante do cruzamento das avenidas Eusébio Matoso e Faria Lima. Imediatamente atrás saiu o policial, seguido ainda por outros passageiros. Sentia-me nervoso. Um calor anormal aquecia minha barriga. “O que esse cara quer com a gente?”


- Tá me empurrando por quê? Tá com pressa é? Isso é desacato à autoridade, rapaz - gritou em tom autoritário o policial.


Olhei para trás pelo canto do olho direito. Colérico, o policial enfiava a mão esquerda no bolso do camisão bege, enquanto a direita permanecia sobre a cintura, sinalizando a existência de uma arma. Suas palavras, contudo, não eram dirigidas a nenhum de nós. Um rapaz magro, ao mesmo tempo simplório e bem arrumado, olhava assustado sem entender nada. Confuso, tentou conversar:


- Ma, ma, mas eu nem toquei no senhor.


- Cala boca! Fica quieto, se não vai ser pior pra você - esbravejou o policial, sacudindo uma credencial diante do nariz do rapaz.


O barulho de nossas botas ecoava pela calçada enquanto seguíamos a passos rápidos pela Faria Lima, nos afastando da confusão. O calor no estômago se transformava numa leve sensação de embrulho. Apesar de aliviado pelo problema não ser conosco, sentia náuseas pelo gesto autoritário do policial. O coitado do rapaz, afinal, não tinha feito nada. “Que gambé sacana!”


Após o primeiro quarteirão, a tensão começou a se desfazer e o papo voltou a ficar animado. Debatíamos o restante da programação daquele sábado. O Tieta contou que fora convidado para duas festas naquela noite, uma na Vila Gomes e outra no Bonfa, como carinhosamente chamávamos o Jardim Bonfigliolli. Isso significava que o convite se estendia a todos os topetudos da região, pois havíamos nos especializado em visitar festas alheias.

terça-feira, 2 de março de 2010

Um domingo especial (Cap. 12/Parte 2)

Depois de um bom tempo zanzando pela pista de dança do piso superior, resolvemos descer no momento em que teve início uma sessão de músicas românticas. Escutar Trace Chapmam, afinal, era demais para os nossos ouvidos roqueiros. Eu liderava o pequeno grupo, seguido pelo Supondo, o Wilson e o Morcegão. Quando estávamos no meio da escadaria que levava ao térreo, meu olhar se deparou com uma linda garota vindo no sentido contrário. Louros cabelos encaracolados emolduravam o rosto claro, enfeitado por bochechas rosadas, olhos acastanhados e lábios finos e delicados, que formavam um sorriso discreto e extremamente simpático. Bem proporcionado, o corpo se movia com delicadeza e cheio de feminilidade. “Nossa, que gata!!!”, pensei, sem conseguir desgrudar os olhos da formosa menina.

Para minha surpresa, no entanto, ela e a amiga que a acompanhava pararam logo após passarem por mim para cumprimentar o Wilson e o Morcegão. Visivelmente satisfeitos com o fortuito encontro, os dois rapazes fizeram um sinal pedindo para que eu os esperasse. “Puts, nessa eu não acredito! De onde será que os caras conhecem essa gata?”, me perguntava, encantado pela beleza da menina.
Após trocarem beijinhos e baterem um rápido papo com as garotas, meus dois amigos reiniciaram a descida, enquanto eu e o Supondo os esperávamos alguns degraus abaixo, atrapalhando o trânsito.

- Pô, quem é aquela mina? Que gata!!!

- É a Carol, ela é lá do bairro, uma daquelas minas que eu te falei - explicou o Wilsão.

- Gostei, vocês têm que convidar mais minas desse naipe - brinquei, antes de voltar a descer a escada.

- Se liga, Claudinho, essa não é pro seu bico não.

- Então é pro bico de quem? Pro seu?

- Exatamente, exatamente - concluiu o Wilson em tom de gozação.

Naquele instante, o movimento já era grande no térreo. Praticamente toda turma rockabilly estava por ali. O DJ, contudo, permanecia tocando um rock mais moderno. Naquele exato instante, o som do Oingo Boingo substituía a música dos ingleses do Queen nas caixas espalhadas ao redor da pista. Mas não demorou muito para que a sessão realmente roqueira tivesse início, em grande estilo, com “Cry, cry, cry”, um dos grandes sucessos de Johnny Cash, conhecido por seu ritmo forte como um trem e cortante como uma navalha.

A música tocou primeiro meus ouvidos, a seguir penetrou em meu cérebro, desceu por minha coluna através de uma descarga de energia e se espalhou por meu corpo, ocupando espaço em todos os membros e alterando também a expressão do meu rosto. Como um Incrível Hulk de topete, sentia os acordes da música me transformarem. Já não era mais o garoto baixo, de um metro e sessenta e oito de altura, tampouco continuava a ser o dono de um magro corpo de cinquenta e cinco quilos. Sentia-me mais forte, confiante e dançava com uma energia inabalável, deixando toda timidez de lado. Ao som do bom e velho rock’n’roll, podia enfrentar qualquer temor, qualquer perigo, qualquer adversário.

A alegria transbordava da pista de dança. Dezenas de garotos e garotas se amontoavam para acompanhar o informal espetáculo apresentado por nosso grupo de roqueiros, cujos pés moviam-se sem parar, embalados pelos básicos acordes do rockabilly. Até o Supondo, que uma vez ganhara um concurso de break numa festa escolar anos antes, redescobrira o prazer de dançar e movia-se - ainda desajeitado, mas com muito entusiasmo - em um canto do salão. Durante aquela breve sessão de músicas, deixávamos de ser simples garotos do subúrbio, esmagados pela imensidão e indiferença da cidade grande, para tornar-nos especiais, capazes de dançar como mais ninguém em Sampa.