quarta-feira, 23 de setembro de 2009

Na mira da chacota (Capítulo 7)

Os bancos espalhados pelo pátio da escola estavam lotados. Garotas conversavam animadas, divididas em pequenos grupos, enquanto os meninos mais novos jogavam futebol com uma bola improvisada, feita do pote plástico de um iogurte de morango, cujo conteúdo fora consumido minutos antes por algum dos jogadores. Num canto, dois rapazes com os semblantes preocupados corriam para fazer a lição de casa atrasada, levando muitas vezes os olhos ao relógio redondo preso à parede sobre o balcão da lanchonete, onde quase duas dezenas de estudantes se acotovelavam para comprar um pedaço de pizza ou um copo de refrigerante.

Muitos amores platônicos também desfilavam por ali, podendo ser logo identificados pelos olhares apaixonados que atravessavam o recinto. Havia ainda os poucos, ou pouquíssimos, casais de felizardos que desfilavam de mãos dadas e, vez ou outra, trocavam beijos discretos, acatando os limites impostos pela escola, cuja direção, apesar de liberal, não permitia exageros. Aquele, sem dúvida, era o melhor momento do dia. Quinze rápidos minutos em que paixões nasciam, sonhos morriam, tarefas eram finalmente finalizadas, reputações eram arrasadas e muitas rixas consolidavam-se, ganhando às vezes uma gigantesca dimensão.

Para mim, o recreio também era um momento especial, apesar do turbilhão de emoções que costumava me dominar durante aqueles quinze minutos. Eu vivia uma fase de grande popularidade, algo que nunca experimentara antes. O topete e a jaqueta de couro tinham me tirado do anonimato, me elevando à condição de um dos caras mais conhecidos da escola, despertando tanto admiração como desprezo. Havia até um grupo de meninas da quinta série que me adorava. Lógico, eu ficava orgulhoso, mas não valorizava muito aquele fã-clube quase infantil. “Minha nossa, são muito novas! Vão queimar meu filme com as meninas mais velhas”, costumava pensar, lembrando preocupado dos insistentes telefonemas que uma delas andava fazendo para minha casa. No entanto, além de ser admirado, eu também admirava à distância, principalmente as madeixas castanhas da bela Mariana, uma menina da sétima série de pele morena, sorriso fácil e corpo formoso, que me fazia sair apressado da classe toda vez que o sinal batia avisando o início do recreio. Infelizmente, ela e suas amigas - também belas - viviam cercadas pelos caras bacanas do colegial, muitos dos quais já iam dirigindo o próprio carro para a escola. Esses mesmos caras, aliás, eram a causa da minha falta de ânimo em diversos intervalos. Desde aquele frio dia de inverno em que decidira adotar o visual rockabilly em tempo integral, havia me tornado o alvo preferido da chacota daquela turma de garotos mais velhos. Situação que em nada me agradava.

Por todos esses motivos, minha atenção estava um bocado dividida enquanto atravessava o pátio conversando com o Gabriel Galante. Minhas palavras respondiam as perguntas do colega de classe, ao mesmo tempo em que meus pensamentos remoíam a já costumeira zombaria e meus olhos vasculhavam o local em busca da charmosa morena que elegera como musa.

Logo localizei a Mariana, perto de uma das mesas, envolvida em um animado bate-papo. Mas passei reto e fui me sentar no longo banco de concreto que delimitava o fim do pátio. Por ali já estavam outros dos meus colegas da oitava série: o Nasser, o Everaldo e o Saulo.

O Nasser - um sujeito simpático, filho de professor universitário, que se esforçava para ocultar da turma sua essência ‘cdf’ - contava que não estaria mais na escola no próximo ano. Seguindo os passos da irmã e o desejo dos pais, pretendia fazer o colegial no Santa Cruz, uma tradicional e renomada escola de São Paulo.

- Eu também vou sair. Vou pro Palmares - contou o Everaldo, galã da classe e sobrinho de um magnata da televisão paulista, cujo cabelo castanho nunca despenteava e com quem, apesar das diferenças, eu me dava muito bem.

O êxodo, contudo, não se limitaria aos dois, já que o Gabriel e o Saulo também pretendiam mudar para outro colégio, o Galileu Galilei. Só eu, o único que realmente morava em São Paulo, continuaria por ali. Todos os outros, habitantes dos condomínios elegantes da região, iriam migrar para as escolas paulistanas. Na verdade, eu não compartilhava com eles do desejo de mudar de colégio, só lamentava que meus melhores amigos fossem se espalhar pela cidade.

A conversa seguia animada com as projeções para o ano seguinte, quando uma turma do colegial sentou-se alguns metros ao lado, no mesmo banco. Senti um frio na barriga e tentei permanecer impassível, sentado e proseando com meus amigos. “Caralho, lá vem esses babacas encher o saco”, imaginei certeiramente, pois logo a turma de garotos mais velhos me elegeu como alvo da gozação naquele intervalo.

O líder das brincadeiras era sempre o mesmo sujeito, o Ronaldo. Cabelo preto liso, pele morena bastante bronzeada, olhos castanhos, um grande nariz e quatro ou cinco centímetros a mais do que eu - devia ter pouco mais de um metro e setenta - compunham a figura daquele garoto de dezesseis anos, por quem eu nutria uma grande antipatia. Naquela manhã, não foi diferente. O cara, imitado por outros dois rapazes, dobrou as barras da calça até pouco abaixo do joelho, deixando a canela à vista. Em seguida, mexeu no cabelo, construindo um tosco topete. Acompanhado pelos risos dos amigos, falou em voz alta: - Pronto, agora eu já virei um rooossscabillyyy, tenho uma calça pra pular brejo e um topete chiqueeeee...

O sangue subiu à minha cabeça. Pensei em avançar sobre o petulante garoto, mas fui acalmado pelo Nasser: - Deixa pra lá, Claudinho. Você sabe que esses caras são babacas mesmo.

- É, não liga. Você sabe que o Ronaldo só quer ver o circo pegar fogo - reforçou o Gabriel Galante. - O cara é folgado mesmo.


Rangendo involuntariamente os dentes, tratei de permanecer sentado, com os olhos mirando em frente, sem focar nada, só vendo um emaranhado de meninos e meninas espalhados pelo pátio. As risadas de deboche, entretanto, ainda penetravam meus ouvidos de forma cortante.

terça-feira, 22 de setembro de 2009

James Dean


Elvis, Jerry Lee, Carl Perkins, Chuck Berry e outros pioneiros do rock provocaram uma verdadeira revolução no comportamento da garotada da década de 50, mas talvez a principal fonte de inspiração desses jovens e adolescentes tenha sido outro personagem, o ator James Dean, falecido em 30 de setembro de 1955, justamente quando a semente do rock’n’roll começava a germinar.
Interpretando personagens desajustados e amargurados, Dean cativou o público norte-americano e acabou transformado em um verdadeiro ícone daquele período. O jovem astro, que faleceu com apenas 24 anos, também ajudou a popularizar o “visual” que a partir da década de 80 seria resgatado pela comunidade rockabilly: topete, camiseta branca, jaqueta de couro com a gola em pé e calça jeans surrada com as barras dobradas.
Quem quiser conhecer um pouco mais sobre o ator, pode conferir dois vídeos que encontrei no You Tube - sempre ele -, ambos relativos ao filme Rebel Without a Cause, que no Brasil ganhou o nome de Juventude Transviada. O primeiro é o trailer original da obra (
http://www.youtube.com/watch?v=cAlzg0S51GY), já o segundo mostra uma passagem famosa, na qual “Jimmy” enfrenta um dos seus adversários (http://www.youtube.com/watch?v=uaIq234nL04). Vale ressaltar que esta produção, na qual Dean contracenou com Nathalie Wood (foto acima), ainda não havia estreado nos cinemas quando o ator colidiu com seu porsche num cruzamento da Califórnia.
Grande abraço!

terça-feira, 8 de setembro de 2009

Talibãs do rock (Capítulo 6)

Vindo ao nosso encontro, o Nique desceu rapidamente os seis degraus que separavam a porta da casa de seus pais da pequena garagem, vazia naquela hora da tarde. Sob o braço, trazia uma pilha de discos.

- Olha aí, Tieta. Vê se acha os discos que você tá procurando. Devem estar entre esses aqui. Eu não vou ficar procurando pra você, né meu? - disse o dono da casa, passando os LPs para o amigo roqueiro.

- Valeu, Nique. Eu quero achar aquele do Cramps, o primeiro do Stray Cats e mais alguns aí pra gravar uma fita pra Pimentinha - emendou o Tieta, acolhendo os discos entre as mãos e se alojando sobre o degrau inicial da escada para realizar a seleção.

Além do anfitrião e do Tieta, estávamos em mais quatro pessoas: eu, o Demente, o Morcegão e o Wilson. Apesar de morar na casa ao lado, o Júnior Neguinho estava ausente.

- Esta hora, o Neguinho deve estar andando pela Faria Lima, rodando um envelope na ponta do dedo - comentou o Morcegão.

- Ou então tá enfurnado num fliperama, matando o trampo. Office-boy adora essas merdas dessas máquinas - destacou o Wilson, sentado sobre a lajota fria que revestia o piso, com as costas apoiadas numa das paredes da garagem.

- Porra, não é assim, não. O Neguinho dá um trampo danado. De manhã cedo ele vai pendurado no busão até o trabalho, lá em Pinheiros. Anda pela cidade o dia todo, levando envelope pra cima e pra baixo, e à noite ainda vai pra escola. Não é moleza, não - defendeu o Nique.

- Ah, mas pode ter certeza que pelo menos umas duas partidas de fliperama ele joga todo dia - argumentou o Wilson, defendendo seu ponto de vista.

- É, talvez, sei lá - desistiu o Nique, enquanto eu achava uma brecha pra contar minha experiência no assunto.

- Eu também já fui office-boy - disse orgulhoso, sem esperar a enxurrada de críticas que viria em seguida.

- Conta outra, Claudinho. Você é mó playboy, nunca viu um trampo na frente - me desancou o Demente.

- Mentira, já trampei sim, quando eu e o meu irmão ficamos de recuperação, uns dois anos atrás. Meu pai fez a gente trabalhar de office-boy, cada um pra um tio.

- Assim não vale, é trampinho café com leite, com o titio riquinho.

- Se liga, zélão. Andava o Centrão todo pagando contas pro meu tio, levando documentos e encarando fila de banco.

- Não boto fé, não. Você é mó pleibas.

- Foram só dois meses e meio, durante as férias, mas que eu trampei, trampei.

O debate teria durado mais um bom tempo caso o Tieta não tivesse feito uma importante descoberta em meio aos discos emprestados pelo Nique.

- Porra, Nique, que droga é essa aqui?! Um disco do Bon Jovi.

- Caralho, ninguém nasce rockabilly. Eu já escutei outras coisas e você também, que eu te conheço faz uma eternidade - defendeu-se o Nique.

- Mas Bon Jovi, música de cabeludo perobo!?

- Passa essa porcaria pra cá - falou o Nique, irritado, pegando o disco das mãos do Tieta. - Quer saber... - continuou o anfitrião, lançando um olhar oblíquo pro resto da turma - eu quero que esses cabeludos de boutique se fodam.

As mãos ágeis do garoto arrancaram a bolacha de vinil de dentro da embalagem de papelão, que, aliás, foi arremessada a metros de distância. Em seguida, as duas mãos seguraram com firmeza o disco e o conduziram de encontro ao joelho do topetudo. A joelhada quebrou o LP em vários pedaços, que espalharam-se pelo piso da garagem, provocando gritos de regozijo entre a turma de rockabillies. O Nique, no entanto, ainda não estava satisfeito. Por esse motivo, os saltos de suas botas esmigalharam vários dos pedaços que enfeitavam o chão.

- Animaaal, é isso aí, Nique - comemorou o Demente.

- Espera aí, que eu já volto - bradou o garoto, subindo a escada e sumindo dentro da casa.

- Caralho, o que ele foi fazer? - perguntou o Morcegão, enquanto nos entreolhávamos, ansiosos pelo retorno do nosso companheiro.

Não demorou muito para que ele surgisse, trazendo uma nova leva de discos sob o braço.

- Achei mais uns pra gente detonar. Tieta, qual você quer: Kiss, Titãs, Iron Maiden, Paralamas ou Queen?

- Passa o Iron Maiden pra cá - respondeu prontamente o rapaz que havia acendido o estopim da turma.

- Eu já volto, vou pegar mais alguns lá em casa - se apressou em dizer o Morcegão, correndo até o sobrado em que morava na mesma rua e reaparecendo pouco depois com mais discos.

- Olha aqui, achei um do Information Society, um do Legião, um do Noel, um do Zigue Zigue Sputnik, um do Roberto Carlos e até o internacional da novela Vale Tudo. Também tem uma fita do Oingo Boingo e outra do Pet Shop Boys.

- Esse do Roberto Carlos não é do seu pai, não? - indaguei preocupado com a possibilidade de nosso momento de catarse vitimar a propriedade de outras pessoas.

- Bem, e se for, o que é que tem? O Morcego só vai estar fazendo bem pro pai dele - filosofou o Wilson, com a pronta aprovação do Morcegão.

- Tá bom, então deixa eu pegar o Information Society - concordei, ansioso pelo momento de despedaçar um dos LPs. Grunhindo como homens da caverna, em poucos instantes destroçamos todos os discos, forrando o piso da garagem com pequenos cacos pretos. E mesmo depois de tudo destruído, continuamos entoando, no limite da garganta, um mantra ensandecido que faria corar de inveja qualquer fanático religioso: - Rock’n’roll, rock’n’roll!!!

Stray Cats, Cramps e outros

Olá, pessoal! Fui ao YouTube e fiz uma lista de vídeos com algumas das bandas citadas no sexto capítulo do livro. Entre os grupos preferidos dos personagens estão o Stray Cats (http://www.youtube.com/watch?v=YoaazVGPtuQ), responsável por popularizar o rockabilly na década de 80, e o The Cramps (http://www.youtube.com/watch?v=-G8kBS7BLHI&feature=related), que cunhou o termo psychobilly ao introduzir uma expressiva dose de psicodelia no tradicional rockabilly.
Já entre as bandas que tiveram seus discos transformados em cacos pela turma de roqueiros do livro estavam o Bon Jovi (http://www.youtube.com/watch?v=GccfzxHIXaY) e o Oingo Boingo (http://www.youtube.com/watch?v=tNbCQr_ClL8), dois grupos que fizeram bastante sucesso na segunda metade dos anos 80. Confiram!
Grande abraço!!!