sábado, 24 de julho de 2010

Noite de balada (Cap. 15/Parte 3)


Cinco ou seis quadras, irregulares e repletas de subidas e descidas, separavam o local em que o Tieta morava da casa do Nique. Apesar de próximo, nosso ponto de encontro naquela noite já estava em outro bairro, a Vila Gomes.

Após dobrarmos uma esquina, avistamos um ponto de agitação no fim da íngreme descida que levava à casa do Nique. Espalhados pela calçada diante da residência, sentados ou em pé, conversando em pequenos grupos, estava boa parte daquela que viria a se transformar na Gator's. O grupo estava acompanhado por algumas meninas, simpatizantes do rockabilly, mas que não aderiam aos nossos trajes de época.

Próximo ao meio-fio, o Duque conversava com o Fabrício. Quase uma dezena de discos estava acomodada sob o braço direito do garoto magro, de estatura mediana, cabelos negros muito lisos e um nariz fino e grande, onde duas amplas narinas se destacavam.

- Legal, cara, você também trouxe uns discos - disse o Duque com uma expressão de satisfação desenhada no rosto assim que me viu.

- Opa, é pra reforçar nosso arsenal esta noite.

- O Nique foi lá dentro pegar uns outros. Ele tem uns legais do Stray Cats.

- Bacana! E quem cuida deles esta noite?

- Xaa comigo, pode passar seus discos que esta noite eu assumo. Vamos fazer uma sonzeira nessas festas - falou o Duque assumindo um ar responsável.

O barulho de saltos de botas batendo apressadamente contra as lajotas que calçavam a garagem anunciou a chegada do Nique. O garoto pequeno - de corpo franzino e cabelos castanhos - apareceu trazendo mais uma porção de discos.

- S’imbora, cambada. Vamos nessa que eu quero dançar o rock’n’roll - gritou o Nique, inflamando o pessoal, ao mesmo tempo em que fechava o portão da casa.
- É isso aí, vamos nessa - concordou o Cabeção, cujo braço direito abraçava os ombros da Taciana, sua namorada.

Os roqueiros que estavam sentados na calçada se levantaram, batendo com as mãos contra as calças para tirar a poeira que se prendera ao tecido. Os outros se viraram e começaram a andar, seguindo o trio formado por Nique, Tieta e Wilsão, responsável por guiar a turma naquela noite de badalação. O grupo voltou pela ladeira que eu acabara de descer, tomando o rumo da alta caixa d’água que se destacava na paisagem da Vila Gomes como um castelo medieval. Estávamos em cerca de 30 pessoas, pelo menos dois terços eram rapazes. Íamos andando despreocupados, em marcha lenta, espalhados pelas ruas do bairro.

O poperô que saía das caixas de som da festa se esparramava pelas vias da região, fazendo-se ouvir a quadras de distância. Cabia a nós melhorar o nível da festa, ao menos no nosso ponto de vista. A balada rolava na garagem de uma casa em frente à caixa d’água, cujo portão estava enfeitado com uma enorme bandeira do Brasil.

A rua estava cheia de gente. Boa parte da moçada recostada nos carros estacionados diante da casa virou a cabeça para ver a chegada de nossa exótica turma de roqueiros. Olhares de surpresa, repulsa e até de satisfação podiam ser vistos nos semblantes dos rapazes e meninas que já estavam na festa.

Algumas garotas, excitadas, correram para dentro da garagem em busca da dona da festa. Amiga do trio que nos guiava naquela noite, a menina nos recebeu com simpatia. Nossa presença causava sempre apreensão nos anfitriões, principalmente nos pais do promotor da festa, mas simbolizava também um considerável status ao evento visitado. Afinal, os roqueiros do bairro não iam a qualquer festinha.

Paramos por alguns instantes diante da casa, jogando conversa fora. Meu exigente olhar de adolescente vasculhava o local em busca de belas garotas. Possíveis perigos também eram analisados com cuidado por minhas vistas treinadas. Determinado, o Duque entrou na casa em busca do disc-jóquei. Os discos de rockabilly formavam uma grande pilha sob um de seus braços.

Não demorou muito para que as caixas de som vibrassem com o rockabilly de Buddy Holly. Atraídos pela música, começamos a entrar na garagem, capitaneados pelo BB, o melhor dançarino do grupo. Sorrisos de satisfação brotavam nos rostos dos integrantes da turma, enquanto entravam com panca de James Dean no apertado recinto da festa, uma garagem com espaço para apenas dois carros.

As pessoas que estavam no local abriram caminho para o nosso grupo. Espontaneamente, formamos um círculo, cujo centro logo foi dominado por quatro casais de dançarinos. Os outros convidados nos cercavam, olhando curiosos nossos passos de dança.

O BB e a Fabiana logo empolgaram a galera. O garoto alto, de ombros largos, olhos e cabelos castanhos mostrava um molejo impressionante. Seus pés moviam-se ligeiros ao ritmo do rock’n’roll. Os braços fortes conduziam com firmeza o corpo elegante da parceira. A morena bonita, de cabelos negros e lisos, se movia graciosa, executando os passos com precisão. Em alguns instantes os corpos se aproximavam frontalmente, quase se tocando. Outras vezes, a jovem girava sob o braço levantado do roqueiro, sendo levada ao outro extremo da pista. Por um momento, o braço direito dele e o braço esquerdo dela ficaram retesados, separando os dois dançarinos. Com leveza, ela voltou em um rápido salto, entregando-se aos braços do colega de dança. No ar, seu corpo foi conduzido para um lado e depois para o outro, exibindo as pernas esticadas. Além da força dos braços, BB usava o apoio das pernas flexionadas para sustentar a menina. O movimento dava o embalo necessário para o principal momento da dança, quando o corpo dela saía do apoio sobre uma das coxas dele e era conduzido para o alto. Os braços do BB se esticavam, fazendo com que o corpo da parceira ficasse quase de ponta-cabeça, com os pés muito próximos do teto baixo da garagem. Após parar por um breve instante nessa posição, a menina voltava com as pernas estendidas vindo de encontro ao corpo do parceiro. Com agilidade ele as desviava para o lado e se inclinava, fazendo com que ela girasse sobre suas costas e caísse em pé do outro lado com a firmeza de uma ginasta, arrancando assobios e aplausos entusiasmados dos espectadores.

Rival do BB quando o assunto era dança, o Denis também fez bonito. Dono de um estilo mais arrojado, conciliava os passos de dança com acrobacias. Após rodopiar a parceira uma série de vezes, inclinou-se para a frente e esticou os braços invertidos entre as próprias pernas. A menina segurou as mãos dele, deixando-se puxar com energia e deslizando velozmente entre as pernas do jovem roqueiro. Após um ágil movimento do parceiro, a menina parou com graça diante dele, fazendo topetudos e convidados vibrarem.

terça-feira, 6 de julho de 2010

Noite de balada (Cap. 15/Parte 2)


Eram quase dez horas quando parei diante do sobrado em que morava o Wilsão. A casa de frente estreita, separada da rua por um portão baixo, era pintada em um tom claro de amarelo e geminada com duas construções do mesmo tipo. Como sabia que a campainha estava desativada, apoiei os discos no muro que dividia as casas e resolvi chamá-lo à moda antiga. As palmas das minhas mãos se chocaram com força meia dúzia de vezes, sendo seguidas por um alto assobio.


Um curto período de silêncio se seguiu até que a cortina da janela da sala se abrisse.

- Oi, Claudinho! - falou o Vagner, irmão mais novo do Wilson, colocando a cabeça pra fora da janela.

- Oi. Seu irmão está?

- Espera aí, vou ver - disse o garoto, antes de sumir dentro da casa.

Sentei-me na calçada com as costas apoiadas no portão de ferro e as pernas dobradas. Sem ter o que fazer enquanto esperava, levei minha mão direita até uma folha seca de eucalipto caída sobre o chão áspero do calçamento. Comecei a despedaçá-la, lentamente, acompanhando sempre as fibras da folha. Quando restavam apenas pequenos pedaços, depositei-os na palma da mão esquerda e atirei-os sobre a calçada, como se fosse um punhado de confetes.

O barulho do motor de um Gol prateado, que despontava a grande velocidade no início da rua, chamou minha atenção. Meus olhos acompanharam a aproximação do automóvel e depois viram ele sumir no final da via. “Caramba, isso lá é velocidade pra uma ruazinha estreita como essa?”
- Tá dormindo, Claudinho? - falou o Wilsão aparecendo na porta.

- Se liga. Não sou mendigo pra ficar dormindo na rua - retruquei, virando a cabeça para o lado da porta.

- Será que não, hein? - provocou meu amigo, antes de começar a descer a pequena escada que levava ao portão da casa.

Levantei-me apoiando uma das mãos na grade do portão. O Wilsão saiu logo depois, vindo me cumprimentar. A palma de minha mão direita escorreu rapidamente sobre a dele, em seguida meu braço se encolheu alguns centímetros e a minha mão se fechou, voltando para encontrar o punho do Wilson e encerrar a tradicional saudação da turma.

- Legal, você trouxe os discos. Vamos ver o que vai pegar nessas festas de hoje.

- É, peguei uns oito discos. Acho que o Nique e o Duque também vão levar alguns.

Andamos um pequeno trecho e viramos à esquerda na esquina seguinte, tomando o rumo da casa do Tieta, um quarteirão e meio adiante.

- E aquele colégio que você estuda como é que tá? A playboizada da Granja ainda tá enchendo o saco?

- Não, agora tá mais calmo, alguns folgados saíram da escola. Mas você precisa ver as minas que entraram lá nesse começo de ano, uma mais gata que a outra.

- É? Na sua classe?

- Não, na oitava, cada gata. Tem até uma que parece que frequentava a House, mas eu não lembro dela lá não.

- Poperôzinha?

- É, mais ou menos, mas é bem bonita, tem um corpão, gostosa pra caramba. Só que ainda não é minha amiga, nunca falei com ela.

- Deixa de ser devagar, Claudinho. Você é muito tímido.

- É meu jeito, fazer o quê? - respondi, incomodado com a constatação, assim que chegamos à casa do Tieta. Também um sobrado, a residência se diferia em alguns aspectos da que visitara pouco tempo antes. O primeiro piso da casa, geminada de apenas um lado, ficava bem acima do nível da rua, enquanto a entrada era repleta de plantas e flores, um gosto que a mãe do Tieta cultivava há bastante tempo.

- Tietaaa - gritou o Wilson assim que paramos em frente à casa. Nosso amigo apareceu na janela do quarto, no andar superior da casa.

- Porraaa, vocês demoraram, hein?

- O Wilson que tava enrolado - cutuquei.

- Tava brigando com o cabelo, é? Claudinho, você sabia que o cabelo do Wilson é tão duro que ele precisa fazer musculação pra pentear? - mexeu o Tieta com um sorrisão no rosto, feliz por dar início a mais uma sessão de provocações.

- Vaaai se foder! Seu cabelo não é muito melhor, não - respondeu o Wilson com tom de pouco caso, enquanto nos divertíamos com a sua irritação.

- Haha, já vou descer - disse o Tieta, desaparecendo da janela.

Instantes depois, já seguíamos rumo à casa do Nique, onde encontraríamos o resto da turma. Caminhávamos pela pista, desconsiderando a existência da calçada.

- E a Gator’s sai ou não sai? - perguntei aos rapazes, referindo-me a um assunto bastante em pauta naquele início de ano. Como já acontecia entre rockabillies de outras regiões da cidade, queríamos criar uma identidade própria para a nossa turma. O nome para o grupo estava definido: Gator’s. Além de homenagear Bill Halley, um dos pais do rock’n’roll, responsável por celebrizar a canção “See you later alligator”, a designação seguia a tendência de escolher animais como símbolo para as turmas. Pelas ruas de São Paulo já circulava o pessoal da The Ratz e na vizinha Taboão da Serra existia a Fox Billy.

- Vai sair sim, só temos que reunir a turma toda e acertar os detalhes - respondeu o Tieta, deixando o ar bonachão e assumindo uma postura mais grave.

- O que tá difícil é sair essa reunião. A gente tem que agitar isso logo - ressaltou o Wilson.

- Mas o que tá faltando? - indaguei novamente.

O Wilson estacou por um momento. Seu rosto magro assumiu uma expressão pensativa antes que ele virasse a cabeça em minha direção e começasse a falar: - Temos que escolher o desenho para o estandarte da turma e mandar fazer a tela para pintar as camisetas. O Fernandinho trouxe um desenho legal, tem que ver se o pessoal aprova.

- É, se todo mundo estiver por aí, podemos até conversar hoje mesmo - sugeriu o Tieta.

Balancei a cabeça concordando, enquanto retomávamos a caminhada. As ruas do bairro, predominantemente residencial, estavam tranquilas. Luzes azuladas avançavam sem força pelas janelas de muitas casas, onde pessoas refasteladas em sofás acompanhavam a chocha programação televisiva das noites de sábado. Vez ou outra, um carro passava por nós, clareando com seus faróis as vias mal iluminadas.