quarta-feira, 7 de outubro de 2009

Uma tarde de garimpagem

O centro da cidade estava fervilhante naquela tarde de quinta-feira. Muitas pessoas passavam apressadas, acompanhando o ritmo acelerado da metrópole. Outras tantas se deixavam seduzir pelas atrações típicas das ruas da região, como um sujeito engraçado que prometia cuspir fogo e um entusiasmado pastor evangélico que agitava a bíblia ferozmente de um lado para o outro.

A agitação era tamanha que andávamos quase sem ser notados. Quase, é verdade, porque vez ou outra era possível ouvir algum comentário. Diante de um boteco, um sujeito alto, mulato, que bebericava uma cerveja gelada enquanto observava o movimento na rua, não resistiu. Cutucou o amigo sentado ao lado e disparou: “Olha lá o tipinho da molecada, tão achando que voltaram no tempo. Elvis não morreuuu”, brincou o moço, tirando risos do amigo e do atendente do bar, que enxugava um copo do outro lado do balcão.

- Cara escroto, merecia umas porradas - revoltou-se o Morcegão, justamente o caçula entre os roqueiros do Bonfigliolli.

- Não esquenta, Morcego. Daqui a pouco a cachaça derruba esse escroto - aconselhou o Wilsão, valendo-se da condição de mais velho e experiente integrante da turma.

Aquela era uma região da cidade que me agradava bastante. Sentia-me bem vagando pelas ruas movimentadas do centro, sem me incomodar com o trânsito, a poluição e o barulho característicos daquele pedaço da maior cidade brasileira. Naquela tarde não era diferente, por isso caminhava satisfeito pelas agitadas vias do coração de São Paulo na companhia de três topetudos em busca de novos discos para o acervo da turma. Além do Morcegão e do Wilson, o Duque também integrava o grupo. Ele, afinal, era uma espécie de consultor musical da turma. Qualquer aquisição ficava mais segura com o seu acompanhamento.

Logo após terminarmos a travessia do Viaduto do Chá, quando já passávamos diante do imponente prédio do Teatro Municipal, um comentário meu deixou o Morcegão ainda mais indignado.

- Porra, vocês acreditam que um dos meus tios não fala mais comigo porque eu sou rockabilly?

- Caramba, que cara louco. Não tem nada a ver - indignou-se o Morcegão.

- É, outro dia fui numa festa do meu primo e ele nem me cumprimentou. Passava por mim e me ignorava. Pra compensar, teve uma gatinha, filha de um amigo dele, que ficou encantada comigo. Vinha toda hora puxar papo.

- E você pegou? - questionou o Wilsão, entrando na prosa.

- Não deu, era uma festa muito família. Tava minha vó, tios, tias, todo mundo.

- Deixa de ser devagar, Claudinho.

- Mas espera aí que eu ainda não terminei. Sabe o que esse meu tio falou da última vez que trocou ideia comigo?

- O quê?

- “Esse papo de rockabilly é coisa de veado. Esses caras aí que gostam de rock são todos umas bichas.” Foi isso que ele disse.

- Porraa, esse seu tio é muito folgado - revoltou-se o Morcegão.

- É isso aí, nem conhece a gente e fica falando merda - apoiou o Wilsão, já rangendo os dentes.

Apenas o Duque manteve a calma: - Sempre vai ter gente falando essas coisas. Os caras não conhecem então ficam falando bobeira. Ou é marginal, ou é maloqueiro, ou é bicha. Neguinho vai sempre falar, a gente não pode dar bola pra isso - sentenciou o Duque, fleumático como sempre.

- E ainda tem uma outra tia que veio me pedir explicação sobre a minha seita - acrescentei, sem conter a verborragia.

- Porra, seita. Aí já é demais - falou o Duque com um sorriso no rosto.

Uma loja de discos alguns quarteirões à frente fez com que interrompêssemos a indignada discussão. Percorremos as prateleiras até achar o que nos interessava. Num canto escondido da loja estavam enfileirados alguns discos do verdadeiro rock’n’roll.

- Esse mundo tá perdido, os discos de rockabilly ficam soterrados no fundo da loja enquanto essas porcarias de poperô, A-Ha, Gun’s Roses e Oingo Boingo ‘tão’ por toda parte - resmungou o Morcegão, fazendo jus ao mau humor que o dominara naquele dia.

- Pô, Morcego. Isso que é bom, esses discos não são pra qualquer um. Já pensou aquele monte de zélão da escola curtindo o nosso som. Aí sim seria o fim do mundo - falou com sabedoria o Duque, ganhando apoio generalizado.

- Isso é verdade, já imaginou os playboyzinhos escutando o nosso som. Blergh... Me dá enjôo só de pensar - concluiu o Morcegão, mostrando uma rápida assimilação dos ensinamentos.

- Esses discos aqui já são todos manjados. Esse eu tenho. Esse outro aqui o Nique já tem - comentei enquanto analisava os long-plays debruçado sobre a prateleira que continha a reduzida seção roqueira.

- É, cara, pelo jeito não tem nada interessante nessa espelunca - concordou o Wilsão, cujo olhar acompanhava o movimento de minhas mãos sobre os discos.

- Vamos nessa, estamos perdendo tempo aqui. O negócio é ir direto pra Galeria do Rock - aconselhou o Duque, virando-se em direção à porta da loja e liderando a retirada do grupo de roqueiros.

- E, agora, por onde vamos? - questionou o Morcegão, cujo senso de orientação se restringia às ruas do Jardim Bonfigliolli e da Vila Gomes.

- Pô, é só quebrar a próxima à direita e caminhar mais um quarteirão. Eu sei, andei muito por aqui quando era office-boy - me apressei a falar, fazendo panca de conhecedor do pedaço.

- Lá vem o Claudinho com essa conversa de novo - resmungou o Morcegão, ganhando o apoio imediato do Wilsão: - Nem digo nada, nem digo nada.

- Haha, mas ele está certo, o caminho é esse mesmo, - disse o Duque - a 24 de maio tá bem pertinho.

O curto trecho que nos separava da rua 24 de maio foi rapidamente vencido. Logo nos deparamos com a grande galeria onde inúmeras lojas de artigos ligados ao rock se espalhavam por vários pisos. Headbangers, punks, góticos, rockabillies e até carecas, todos podiam encontrar discos dos seus grupos favoritos nos corredores daquele centro comercial alternativo. Os cabeludos, sempre mais numerosos, possuíam um número de opções maior. Já os topetudos tinham que se contentar com apenas uma loja especializada na música dos primórdios do rock.

Com o Wilsão à frente, subimos pela escada rolante para o primeiro andar da galeria. Depois, caminhamos altivos até o final do corredor, onde estava localizado nosso destino naquela tarde. Afinal, apesar de mantermos o respeito naquele espaço frequentado por tantas tribos, era importante deixar clara nossa condição de roqueiros. A loja era uma legítima “Disneylândia” para admiradores do rockabilly. Pôsteres pendurados nas paredes, camisetas estampadas com fotos de bandas e músicos dos “fiftie’s”, um ou outro livro e discos, muito discos para o deleite de qualquer topetudo.

Aparentando quase quarenta anos, o dono da loja, um sujeito de cabelos e bigode de um louro quase ruivo, nos recebeu de forma simpática e logo entrou num animado papo com o Duque e o Wilsão. O assunto, inevitavelmente, era o rock’n’roll. Eu, sem perder tempo, me entreguei ao prazer de revirar as gôndolas da loja, procurando algo que ainda não sabia o que era. Meus dedos agiam de forma sincronizada, deixando os discos ao alcance do meu olhar. A avaliação era rápida. “Huuum, esse é bacana, mas tá muito caro. Esse outro eu tenho. Caraca, um lp do Pelvis”, comemorei, pinçando um disco do grupo de rock argentino.

- Morcego, olha esse aqui. É daquele grupo argentino, o Pelvis.

- Pelvis, nunca ouvi falar. Que eu saiba argentino só entende de tango.

- Deixa de ser zélão, você está por fora. Vou chamar o Duque - disse, virando-me para o amigo roqueiro, ainda envolvido na conversa com o dono da loja. - Duque, chega aí, dá uma dica pra gente.

O garoto pediu licença ao dono da loja, deixando-o só com o Wilsão. Em seguida, veio ao nosso encontro.

- Porra, o tiozinho manja pra cacete de rock - comentou o rapaz com ar admirado quando chegou mais perto.

- Duque, o que você acha desse disco aqui? É daqueles argentinos do Pelvis. São eles que cantam aquela música Frívola, não é?

- É, são eles mesmos. Fazem um som bem bacana, é em espanhol, mas é bem legal, diferente.

- Te falei, Morcego. Bem, mas você ainda é muito novo pra saber das coisas - disse, provocando o garoto, que se limitou a responder com uma careta de desprezo.

Separei o disco num canto e continuei o garimpo. “Quem sabe encontro alguma coisa do Buddy Holly”, meditava enquanto analisava os long-plays que passavam diante dos meus olhos. Sem sucesso na nova busca, resolvi consultar o proprietário.

- Você tem aí alguma coisa do Buddy Holly? Faz tempo que estou procurando alguma coisa dele.

- Sim, sim, tenho uma coleção muito legal. Só que são fitas, não discos. São seis fitas com praticamente toda obra dele, afinal, ele morreu cedo.

- Poxa, legal!! E quanto custa?

O dono da loja sinalizou o preço com os dedos das mãos.

- Caramba, é muito caro. Não consigo comprar agora, não. Quem sabe, depois junto uma grana - lamentei, decepcionado.

A exploração daquele paraíso do rock durou ainda mais uma hora. Além do bom papo do proprietário, outros rockers apareceram animando a conversa. A decisão de ir embora só foi tomada quando o Wilsão lembrou que a hora do ‘rush’ estava próxima.- Puts, é mesmo! Melhor ir embora, senão vamos ter que pegar o busão apinhado de gente, com neguinho pendurado na porta - concordou o Morcego, logo após o comentário do Wilsão.


Rockabilly à argentina


Olá, amigos! Neste oitavo capítulo do livro, alguns jovens roqueiros do Bonfigliolli fizeram uma garimpagem nas lojas do centro de São Paulo em busca de discos que enriquecessem o acervo da turma. Entre os achados dos personagens estava um disco do grupo argentino Pelvis, que fez sucesso no circuito rockabilly no final da década de 80 e no início da década de 90. Por esse motivo, fui até o YouTube e, depois de uma árdua procura, selecionei um vídeo para que vocês conhecessem um pouco mais do rock’n’roll feito por nossos vizinhos.
http://www.youtube.com/watch?v=zsiruO-HLC8&feature=related




Grande abraço!