O curto passeio pelos corredores da escola pareceu durar uma eternidade. A porta da sala da diretora estava entreaberta quando chegamos. Antes de entrar, o bedel deu uma leve batida com os nós dos dedos da mão direita na madeira da porta. Depois, colocou a cabeça para dentro e anunciou nossa chegada: - Dona Vera, com licença, o Cláudio está aqui. - Um breve silêncio antecedeu a resposta da diretora, que usou um tom de voz rigoroso para pedir que eu entrasse.
Os escuros olhos verdes da diretora fixaram-se em meu rosto com um ar pouco amistoso no mesmo instante em que transpus o umbral da porta. Meu estômago queimava diante das pouco animadoras perspectivas. Apesar de um pouco invocado, sempre fui quieto, pouco afeito à bagunça, por isso não estava familiarizado com situações daquele gênero. Aquela era apenas a segunda vez que entrava naquele temível escritório, símbolo supremo da autoridade escolar. Minha primeira visita fora mais de dois anos antes, quando me envolvi em uma briga durante a aula de educação física.
A mulher de volumoso cabelo cor de fogo, cuja idade passava alguns anos dos quarenta, compensava a baixa estatura com uma postura enérgica, dosada por pitadas de compreensão, provavelmente adquirida graças aos estudos que fizera na área de psicologia. A disciplina de Freud era, aliás, a grande paixão da diretora, que conciliava o trabalho na direção da escola com aulas sobre o tema para os alunos do primeiro colegial. Caso continuasse por ali, seria, inevitavelmente, aluno dela no ano seguinte, como acontecia com meus rivais naquela ocasião.
- Sente-se, por favor - falou Dona Vera, enquanto o Bedel fechava a porta atrás de mim.
Ajeitei-me na cadeira, observado atentamente pela diretora, cujo silêncio contribuía para aumentar a gravidade da situação.
- Então, Cláudio, o que está acontecendo? O que esses rapazes vieram fazer aqui?
- Naaada - falei de forma arrastada, hesitando para responder a pergunta.
- Como nada? Ninguém sai de longe só para passear na porta de uma escola.
- Bem, na verdade, eles ficaram sabendo que tem uma turma aqui que não gosta muito de rockabilly. Então, bem, resolveram vir saber por que isso acontece.
- O que há de estranho nisso? Ninguém é obrigado a gostar da mesma música que vocês.
- Bem, é verdade. É que não é bem da música que eles não gostam. Eles não gostam das pessoas que gostam de rockabilly.
- Como você?
- Ééé.
- Huumm - resmungou a diretora, cruzando os braços sobre a mesa e cravando o olhar ainda mais fundo em meus olhos. - Sabe, ser diferente não é uma coisa fácil. Você lembra de mais alguém em toda escola que se vista desse jeito?
- Não - respondi, sentindo uma ponta de orgulho.
- Então, se todos se vestem de maneira normal e você usa essas jaquetas pretas, quem está errado?
- Não sei.
- Talvez fosse melhor você deixar de usar essas roupas na escola.
- É, talvez, mas se o uniforme está liberado...
- Sabe, nós precisamos saber distinguir o lugar certo para cada coisa. Essa roupa seria legal numa festa, mas não na escola. Você já imaginou um advogado indo a uma audiência trajado dessa maneira?
Cabisbaixo, mirei por um instante as pontas finas das minhas botas. É claro que eu podia entender o que a diretora falava, afinal meu pai dizia a mesma coisa fazia uma eternidade. “Mas rockabilly não é só uma roupinha de festa, é muito mais que isso”, meditei, procurando tomar coragem para me expressar novamente. Sobre meu colo, minhas mãos se esfregaram, revelando a ansiedade que me dominava, enquanto a sala era ocupada por um ameaçador silêncio. Tomado por uma súbita coragem, decidi explicar minhas ideias à diretora, talvez ela compreendesse minha situação. Ergui a cabeça, um pouco intimidado, e disparei minha frase favorita.
- Rockabilly não é só música ou dança. É um estilo de vida que te acompanha vinte e quatro horas por dia - disse em tom sério, fazendo uma breve pausa para realçar a importância da declaração, antes de concluir o pensamento. - Por isso, tanto faz o lugar, um rocker é sempre um rocker.
A diretora respirou fundo, pouco satisfeita com a minha resposta. Depois voltou à carga.
- Você já ouviu falar no Roman Polanski, o diretor de cinema?
Surpreso com a pergunta, pensei por um instante em busca da resposta. “Puts, já ouvi esse nome, mas agora não lembro direito quem é. Devo ter ouvido o Léo falar alguma coisa sobre ele”, matutei, lembrando-me de um jovem amigo cinéfilo.
- Acho que sim - respondi pouco convicto.
- Esse diretor, o Roman Polanski, sempre foi um homem muito polêmico. Quando ele estava cursando cinema, ainda na Polônia, organizou um baile de alunos e convidou um bando de arruaceiros para invadir a festa e causar confusão para que ele pudesse gravar um filme, misturando ficção e documentário.
“Poxa, que ideia legal”, pensei, sem compreender onde a diretora queria chegar.
- Mas, anos depois, quando já era um diretor consagrado, ele se casou com uma atriz famosa, muito bonita, a Sharon Tate, que tinha trabalhado em um filme dele. O problema é que um dia a casa dessa atriz foi invadida por uma gangue de fanáticos, liderados por um psicopata - nesse instante, a diretora fez uma breve pausa, buscando na memória os detalhes da história que narrava. Ainda sem entender absolutamente nada, eu a observava com as sobrancelhas franzidas e ar curioso.
- Esse líder da gangue achava que era Jesus Cristo reencarnado e também acreditava que os Beatles eram anjos enviados à Terra para avisar sobre o apocalipse. Era um fanático por rock e seus seguidores formavam a gangue que invadiu a casa da esposa de Polanski - narrava dona Vera, com os olhos mergulhados nos meus e ainda com ar severo, criando uma tensa atmosfera. - Essa gangue invadiu a casa da Sharon Tate e promoveu uma chacina, matando a atriz e todos os amigos dela que estavam por ali. Depois, os assassinos escreveram nas paredes, com o sangue das vítimas, três frases que faziam referência às músicas dos Beatles. Uma dessas frases era “Helter Skelter”, pois eles achavam que a canção do quarteto inglês representava o caos total, a revolução final, a destruição - continuou a educadora, absorta na terrível narrativa. Eu continuava observando-a atentamente, agora com uma careta no rosto, onde misturavam-se curiosidade, estranheza e um bocadinho de piedade.
- É verdade que os Beatles não tinham nada a ver com isso. Esses assassinos eram uns loucos varridos - encerrou dona Vera, com a expressão aliviada, saindo do êxtase. Logo em seguida, continuou: - Eu pedi para seu pai vir buscá-lo. Você vai levar apenas uma advertência, mas não quero mais saber de confusão. Fique longe dos rapazes do colegial. Eles me disseram que você começou tudo dando uma ombrada no Ronaldo alguns dias atrás. Então, evite ficar perto deles. O último bimestre já está começando e não seria nada bom pra você levar uma suspensão ou até ser expulso nessa altura do ano.
- Ma-mas, dona Vera - gaguejei, querendo explicar que não era o único responsável pela confusão. - O Ronaldo e o pessoal do colegial vivem me provocando, eles chegaram a escrever na parede da classe...
- Agora chega. Eu já conversei com o Ronaldo e não quero mais saber de confusão - concluiu a diretora, segundos antes do sinal soar pelos corredores da escola, anunciando o horário de saída dos alunos do colegial. - Aliás, mandei que ninguém saísse até que seus amigos fossem embora, seja por iniciativa própria ou com a ajuda da polícia, que já está a caminho. Queira se retirar, por favor.
Novamente cabisbaixo, sentindo-me derrotado, tratei de me levantar. As forças para prosseguir argumentando tinham se esvaído e estava claro que a balança não pendia muito pro meu lado. Alojei minhas mãos nos bolsos da calça, balancei a cabeça para me despedir da principal autoridade do universo escolar e segui caminhando rumo à porta. Antes de abri-la, entretanto, um pensamento surgiu em minha cabeça: “Porra, cara, cadê seu orgulho? O James Dean nunca sairia da sala da diretora desse jeito.” A nobre ideia fez com que ajeitasse meus ombros, até então curvados em um inconsciente sinal de subserviência. Logo em seguida, tirei as mãos do bolso e as conduzi até a gola da jaqueta, tratando de revitalizar o visual roqueiro. “Assim é melhor. Derrotado, sim. Humilhado, não”, disse para mim mesmo, recobrando a auto-estima, enquanto minha mão direita girava a maçaneta da porta.
A recente conversa com a diretora ainda ressoava em minha cabeça quando entrei no corredor. Apesar de não simpatizar muito com a causa rockabilly, ela não tinha me suspendido nem expulsado, como muita gente apostara pelo colégio afora. Mas o que realmente me intrigava era a história do Roman Polanski. “Caramba, não entendi nada. Será que ela quis me comparar com o tal diretor de cinema ou quis dizer que a minha turma é igual à tal gangue de malucos que ela falou. Não sei, não, acho que ela viajou na maionese ou, então, não tá batendo bem.”
sexta-feira, 4 de dezembro de 2009
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