terça-feira, 24 de novembro de 2009

Uma conversa muito louca (Cap. 10/Parte 1)

Mal acabara de atravessar a porta da classe quando avistei o Nasser caminhando com passos apressados em minha direção. A expressão de surpresa desenhada no semblante do garoto e o ar excitado com que caminhava não deixavam qualquer dúvida, havia confusão por perto. “Xiii, já vi esse filme!”, concluí, pouco antes dele abrir a boca.

- Cara, a porta da escola tá lotada de rockabilly. Até o Wilson, que estudou com a gente, está aí - disse o recém-chegado.

Dias antes eu havia relatado aos companheiros de rock que a situação na escola ultrapassara os limites. A notícia da grande pichação estampada sobre a parede da classe tinha indignado a turma inteira. Também unânime fora o sentimento de entusiasmo que se formara em relação à minha atitude logo após a ofensa. Todos vibraram quando contei que aguardara um encontro fortuito na escadaria da escola para dar uma ombrada desafiadora no principal suspeito, o Ronaldo. Em seguida, a vibração continuou com o relato da quase briga gerada pela provocação.

- Se eles querem treta, vão ter treta - bradou o Tieta.

- Vamos mostrar pra esses caras quem é cuzão - revoltou-se o Nique.

- Temos que tirar satisfação com esses caras - resumiu o Wilson.

Uma reunião na domingueira da Cave definira o “Dia D”, a segunda-feira seguinte. Ou melhor, a manhã seguinte. Para meu alívio, já que a indignação esfriara e um certo arrependimento surgira, na segunda-feira nenhum topetudo apareceu na hora da saída. Logo imaginei que a distância deixara a turma desanimada, afinal para ir até a escola eles precisariam pegar um ônibus para percorrer catorze quilômetros de estrada e ainda caminhar mais um quilômetro e meio. Somente naquele instante, quando o Nasser surgiu com a novidade, o engano foi constatado.

- É mesmo? Pensei que eles tivessem desistido - murmurei, sentindo um frio na barriga. Depois, meus ombros se ergueram sinalizando a minha resignação. “Quem tá na chuva é pra se molhar”, matutei, deixando o Nasser para trás.

Com a mochila preta pendurada no ombro direito e as mãos enfiadas no bolso da jaqueta, segui sozinho para a porta da escola. A agitação nos corredores parecia crescer a cada passo que dava sobre o piso de cimento. No entanto, caminhava sem pressa. Sabia que o encontro com o pessoal do colegial não ocorreria tão cedo. O sinal que tocara minutos antes, logo após o meio-dia, indicava o horário de saída somente para os estudantes do primário e ginásio. Os alunos do colegial sairiam apenas cinquenta minutos depois.

Antes que eu alcançasse o portão, o Mathias, meu irmão, veio correndo ao meu encontro. Apreensão e excitação também se misturavam no rosto claro do menino, emoldurado por revoltos cachos de cabelo castanho claro.

- Porra, todos os seus amigos estão aí. O Tieta, o Demente, o Píter...

- É, eu sei.

- Caramba, que confusão você arrumou. A mamãe e o papai vão ficar loucos na hora que ficarem sabendo. Se bem que os caras são folgados mesmo - matracava meu mano, um ano e seis meses mais novo, enquanto caminhava ao meu lado.

- Olha - falei ao mesmo tempo em que parava no lugar, pouco antes do portão da escola - toma conta da minha mochila e não fica por perto, não. Você ainda é muito pirralho - disse, de forma séria mas preocupada, passando a bolsa com meu material escolar para o garoto antes de retomar a caminhada.

Dona Zefa me observava como no dia frio de inverno em que pela primeira vez desfilara meu topete no território escolar. Mesmo assim, não deixei de cumprimentá-la.

- Boa tarde, dona Zefa.

A senhora mulata apenas sacudiu a cabeça. Logo que atravessei o portão, vislumbrei alguns topetudos encostados em um muro do outro lado da rua. Estavam ali o Cabeção, o Luís, o Fernandinho, o Píter, o Morcegão e dois conhecidos do Bonfigliolli, o Thiago e o Alex, que haviam se solidarizado com nossa nobre causa. Afinal, em nossas cabeças adolescentes, éramos os topetudos guerreiros do bem numa cruzada contra o mal, que se materializara na forma de garotos riquinhos da Granja Viana.

Andando mais um pouco, vi o resto da turma. Tieta, Wilsão, Demente e Nique - a tropa de choque - conversavam com dois veteranos alunos do terceiro colegial diante da escola. Após acenar para os rapazes do outro lado da rua, resolvi me aproximar do local da conversa, naquele momento acompanhada à distância por dezenas de estudantes do ginásio.

Como índios pintados para a luta, os roqueiros estavam mais caracterizados do que em qualquer outra ocasião. Os topetes chamavam quase tanta atenção quanto as enormes fivelas que se destacavam na cintura dos rapazes. As jaquetas tinham as golas erguidas e em quase todos os pés viam-se botinas de bico fino, algumas delas equipadas com esporas. Esse último acessório, aliás, conferia um efeito cênico expressivo, apesar de sua utilidade durante uma briga ser bastante contestável.

- Claudinho, chega aí! Tamos trocando uma ideia com os camaradas aqui - convocou o Wilsão, assim que me viu. Poucas passadas bastaram para que alcançasse os rapazes reunidos sob a sombra de uma árvore. Após saudar cada um dos meus quatro amigos, cumprimentei com um meneio de cabeça os dois garotos do terceiro colegial liberados antes da hora.

- O Raul e o Geleia aqui estão falando que ninguém tem nada contra rockabilly por aqui. É tudo um mal entendido - falou o Tieta com o queixo erguido, o rosto levemente inclinado e uma ponta de ironia na voz.

- Não é o que parece. Estão xingando a gente até nas paredes da escola.

- Espera aí, Claudinho, eu nunca mexi com você - retrucou o Raul, um sujeito atlético, habilidoso no futebol e que, apesar do número significativo de espinhas que marcavam seu rosto, fazia um considerável sucesso com as meninas.

- Realmente, nunca tive problemas com vocês. Ninguém do terceiro nunca disse nada, mas tem uma galera do primeiro e do segundo que já ultrapassou o limite.

Mantendo uma certa simpatia na forma de falar e gesticulando muito, o garoto continuou a argumentação, demonstrando uma razoável habilidade como negociador. O outro rapaz, um sujeito forte e de temperamento mais introspectivo, mantinha-se em silêncio, com os braços cruzados, observando atentamente o debate. Em seu rosto observava-se uma expressão desafiadora e também uma certa dose de desprezo. Estava claro que não temia a turma de roqueiros.

- Poxa, é bobeira a gente continuar com isso. Na hora que tocar o sinal vão sair trinta, talvez quarenta moleques prontos pra brigar. A coisa vai ficar complicada pra vocês também - argumentou o Raul, como um amigo que quisesse nos precaver do pior. Essa perspectiva, no entanto, pouco incomodou os quatro topetudos ao meu lado. Como eu, eles sabiam que nem todos os alunos que sairiam ao toque do sinal estariam dispostos a entrar numa briga. Existia o risco, é verdade, mas nenhum deles parecia preocupado com essa perspectiva.

- Bom, aí é pagar pra ver - ressaltou o Demente em tom desafiador, mostrando-se pouco disposto a partir.

Um pequeno pátio estendia-se diante da escola. Essa área, onde quatro árvores de porte médio proporcionavam uma agradável sombra, normalmente ficava movimentada após as aulas, com a presença de alunos de diversas séries, alguns aguardando os pais e outros aproveitando para colocar a conversa em dia. Naquele início de tarde, um clarão estava aberto ao redor dos roqueiros. Meus colegas de oitava série observavam tudo de longe, enquanto as beldades da turma da Mariana acompanhavam os acontecimentos de um canto do terreno, próximo ao portão do colégio.

O segurança da escola, acompanhado por um dos bedéis, surgiu diante do portão e logo se encaminhou para o epicentro dos acontecimentos. O moço alto, cujo rosto estava tomado por uma expressão grave, logo dirigiu a palavra para mim.

- A diretora quer falar com você, acho que seu futuro por aqui não é muito bom, não - falou o rapaz da segurança, erguendo as sobrancelhas e sacudindo a cabeça.

Hesitei por um instante. O frio na barriga aumentou. Aquela era a notícia mais previsível que eu poderia receber. Mesmo assim, não consegui assimilá-la muito bem. A perspectiva de alguma punição severa, talvez até a expulsão, não era nada animadora. “Puts, o que meu pai vai falar? E minha mãe? Pra piorar tudo o vovô e a vovó estão em casa hoje”, ouvia gritarem meus pensamentos, sentindo pesar a consciência, ao mesmo tempo em que outra voz bradava: “Você tá com a razão, você tá com a razão.”

- Vai lá, Claudinho. A gente vai ficar aqui esperando o sinal - afirmou o Nique.

- É isso aí, é só contar que você não tem nada a ver, que a gente veio porque quis - recomendou o Wilsão.

- Bem, vamos lá - resignei-me, levando o olhar até o rosto sério do segurança.

Meus dedos correram sobre a gola da jaqueta, cuidando para que o estilo James Dean não fosse perdido. Em seguida, iniciei a caminhada, acompanhado pelo bedel. Quase ao lado do portão de entrada, senti pousar com insistência sobre mim um encantador par de olhos azuis. “Poxa, será que essa gata tá querendo alguma coisa comigo?”, questionei-me, esquecendo por um instante a grande confusão que protagonizava naquele início de tarde. A animação, no entanto, durou pouco tempo, mais precisamente até o momento em que a delicada loirinha, de figura quase angelical, sussurrou à minha passagem: - Cuzão!!!

Um sorriso discreto brotou em meus lábios assim que constatei meu profundo engano. “Nossa, viajei, achei que a patricinha tava interessada em mim. Bom, pelo menos ela não chega aos pés da Mariana. Mas que não seria nada mal, isso não seria”, matutei antes que a realidade desfizesse minha distração.

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