terça-feira, 25 de agosto de 2009

Assumindo o topete (Capítulo 4)

O despertador tocou de forma estridente vinte minutos antes do habitual. O som alto me acordou imediatamente. Minha reação, no entanto, foi diferente do costumeiro. Como todos os dias, estiquei o braço até o radiorrelógio, mas naquela ocasião não apertei o botão soneca, abrindo mão do sono extra naquela fria manhã, no início do inverno de 1989. Meus dedos tatearam o aparelho até encontrar o pino que desligava o despertador. Em seguida, sem embromação, joguei a coberta para o lado e levantei determinado. Estava ansioso. Tinha tomado uma decisão importante na noite anterior: a partir daquela semana ia adotar o visual rockabilly permanentemente, inclusive na escola.

Sonolento, andei até o armário, abri as portas de madeira e separei meu traje para aquele dia: camiseta branca, blusa cacharrel azul, calça jeans surrada, um par de meias brancas e um par de sapatos pretos. Também peguei outro item indispensável: o cinto negro equipado com uma enorme fivela dourada de formato oval, no melhor estilo country. Empilhei as roupas no antebraço esquerdo e segurei os sapatos com a mão do mesmo lado. Segui então até a porta, pisando com os pés descalços sobre o carpete cinza. Girei a maçaneta de maneira extremamente cuidadosa, evitando fazer barulho. A casa ainda estava silenciosa, vivendo seus últimos minutos de tranquilidade antes do despertar da numerosa família. As janelas fechadas permitiam que apenas alguns poucos raios de luz solar entrassem por suas frestas. Temendo chamar atenção, optei por não acender a lâmpada do corredor. Passadas leves, motivadas por um enorme sentimento de culpa, me conduziram pelos poucos metros que separavam o dormitório do banheiro. “Caramba, não tô fazendo nada de errado”, pensei, incomodado com a situação.

Meu pé direito, ainda quente do calor das cobertas, tocou o piso frio do banheiro. Um arrepio gelado se espalhou pela minha perna, fazendo com que me arrependesse de ter deixado o chinelo dentro do armário. “Caralho, que chão gelado!” Acelerei o passo, andando sobre as pontas dos pés, e fechei a porta do banheiro com o mesmo cuidado que tivera ao sair do quarto. Logo em seguida, coloquei o sapato no chão, ao lado de um banco de plástico, branco, sobre o qual depositei minhas roupas. Pulei, então, para o pequeno tapetinho estendido diante da pia. O pedaço de pano acolheu calorosamente meus pés, livrando-os do gélido contato com o piso.

Diante de mim, refletido no espelho, estava um rosto amassado, ornado por uma cabeleira revolta, principalmente no topo da cabeça, onde os fios longos se entrelaçavam desalinhados. A imagem sumiu quando abri a porta do espelho para pegar a escova e o creme dental. Escovei os dentes com pressa. Depois, meti-me dentro do boxe, novamente procurando um tapetinho, dessa vez de borracha. Tomei uma ducha rápida e vesti as roupas. Em seguida, me preparei para a etapa principal, a produção do topete.

Munido de uma escova de cabelo, um pote de gel e um secador, comecei a esculpir o penteado diante do espelho. O processo era o mesmo dos dias em que ia para a Cave. Primeiro, peguei a escova e levantei a longa franja, usando o secador para mantê-la no lugar. “Saco, esse cabelo não para!”, resmunguei baixinho, irritado com a trabalheira.

Quando o cabelo estava na forma desejada, ou quase, pois nunca ficava satisfeito, abandonei o secador sobre a pia e peguei o pote de gel. Enfiei alguns dedos dentro do recipiente e tirei um pouco da gosma azulada. Espalhei o conteúdo pelas mãos com uma leve fricção. Depois, comecei a passá-lo pelo topete com movimentos cautelosos, evitando desmanchar a frágil formação dos fios. Terminei de esculpir o penteado manualmente, mas antes de considerá-lo pronto, decidi dar mais uma rajada de secador, esperando que o ar quente ajudasse a fixá-lo. Por fim, passei a escova sobre o cabelo da lateral da cabeça. Cortado com máquina dois, bem curtinho, ele pouco se modificou.

Observei o penteado refletido no espelho e me dei por satisfeito. Infelizmente, minha barba rala não permitia que ostentasse outro item importante no visual de um rocker, a costeleta. Era um pouco frustrante, é verdade, mas não havia nada a ser feito. Só restava esperar que com o passar dos anos os fios ganhassem força e esse problema fosse solucionado.

A casa já despertava quando terminei a produção. Ouvi minha mãe passando apressada pelo corredor, indo provavelmente até a padaria para comprar os pães que a família comeria no café da manhã. Assim que escutei a porta da frente se fechar, sinalizando sua saída, decidi ir para o quarto. Entrei no cômodo acompanhado pelo sentimento de culpa que pulara da cama comigo naquela manhã. Fechei a porta rapidamente, evitando encontrar meus irmãos ou meu pai. Como estava adiantado, coloquei um cassete do Jerry Lee Lewis no toca-fitas para passar o tempo. Lá fora, começava o burburinho de mais um atribulado dia.

Vesti a jaqueta de couro diante do grande espelho retangular pendurado na parede. Fazendo panca de James Dean, levei as mãos até a gola do casaco, deixando-a em pé, com ar rebelde. Fitei meu reflexo, avaliando o visual. Faltava algo... Huuum!!! Talvez o ar melancólico e a cara indiferente do ator de Juventude Transviada.

Pelas pequenas caixas acústicas do toca-fitas, ecoou Wholle Lotta Shakin’ Goin’ On. Ensaiei alguns passos de rock’n’roll, entusiasmado com a música do ‘Matador’. Depois peguei a mochila da escola para conferir se todos os livros estavam ali.

Recém-chegada da padaria, minha mãe bateu na porta, me lembrando do horário.

- São sete horas, não vá se atrasar.

- Tá bom, mãe. Já vou, já tô pronto - respondi do outro lado da porta, com um sorriso no rosto, me divertindo com a mania materna de sempre adiantar o relógio em dez minutos.

Terminei de ajeitar o material, fechei o zíper da mochila e a pendurei no ombro direito. Antes de sair do quarto, parei um instante para tomar coragem. “Qual será a reação do pessoal?” Abri a porta sem pressa. Segui com passos hesitantes pelo corredor e depois pela escada. Minha mãe me olhou com cara de espanto, como se visse um extraterrestre, assim que transpus o umbral da porta da copa.

- Onde você vai desse jeito? - disse, mirando com os grandes olhos castanhos o indiscreto topete que se erguia sobre minha cabeça.

- Pra escola, ué. Onde mais eu poderia ir a essa hora?

- Mas com essa roupa?! Você não tem que usar uniforme?

- Não, faz tempo que ele não é mais obrigatório. E o que é que tem de mais ir assim?

Até então concentrado na leitura do jornal, meu pai virou o rosto para ver o que havia de tão anormal.

- Hoje não é dia de festa. Essa roupa não é apropriada pra ir à aula - disse com tom firme.

- Acho que não vão te deixar entrar. Onde já se viu ir desse jeito pra escola - indignou-se minha mãe.

- Não, não tem problema. Eles deixam sim - resmunguei irritado.

- Bom, você é que sabe, mas essa história não vai dar certo - lamentou minha mãe.

Os traços na face de meu pai denunciavam sua insatisfação, mas ele não falou mais nada. Um silêncio constrangedor encobriu a mesa, onde também estavam dois dos meus irmãos, o João e a Isabela.

Sentei-me, enchi a xícara de café e leite e passava manteiga numa fatia de pão quando meu outro irmão apareceu para dissipar a bruma de silêncio que nos envolvia.

- Poxa, você viu um fantasma? - comentou com um sorriso sarcástico estampado no rosto, tirando sarro do meu topete.

Lancei em sua direção um feroz olhar de primogênito, repleto de significados nada amigáveis. Um ano e meio mais novo, o Mathias adorava me provocar e conforme crescia menos se incomodava com minhas atitudes intimidatórias. Balancei a cabeça, como se lamentasse o comentário, mas deixei passar a provocação. Sabia que não seria a última do dia.

5 comentários:

  1. Nossa, achei esse blog muito sem querer por um email que eu recebo do google, com qualquer noticia que envolve Rockabilly. Resolvi conferir e me deparei com esses maravilhosos textos. Belo trabalho. AGora, no aguardo para o resto dos outros capitulos! UM abraco!

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  2. Ah, compartilhei nos meus itens do Google Reader sobre seu blog e seu livro!

    http://www.google.com/reader/item/tag:google.com,2005:reader/item/ca53516a009a0120

    Abraço!

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  3. Legal, Fuhrmann! Fico bastante feliz que tenha gostado! Afinal, sempre bate uma insegurança na hora de postar um capítulo no blog. Sabe como é, será que deveria ter dado mais uma revisada? Será que deveria ter detalhado mais o texto? E por aí vai...
    Grande abraço e obrigado por divulgar o blog!
    Pedro

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  4. Ta muito interessante o teu texto, essa tua historia. Fique tranquilo, pelo menos a mim agrada. Enfim, no aguardo para os proximos capitulos ainda.

    Abracao.

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