segunda-feira, 10 de agosto de 2009

O rockabilly chega ao bairro (Capítulo 2)

Rrrrrrrrrrrpaaaaaaaaaaaa...

O catarro esverdeado e nojento escorreu pela cabeça do Wilson, sendo seguido por mais uma saraivada de cuspes vindos de todos os lados. Logo depois, quando o grupo parecia desanimar, alguém teve a ideia de completar o serviço com terra e grama tiradas do canteiro central da avenida.

- Para com isso, que puta babaquice! - gritei indignado com a maneira que a turma havia escolhido para homenagear o amigo aniversariante.

- Cala a boca, Claudinho!

- Deixa de ser babaca!

- Puta papo de zélão! - retrucaram os mais entusiasmados com a comemoração.

A recepção pouco animadora não impediu, entretanto, que meus apelos acabassem atendidos, provavelmente porque a homenagem já estava feita. Estiquei a mão e ajudei o Wilsão a levantar. “Puts, o cara tá breaquíssimo, tomou todas!”, pensei enquanto auxiliava o aniversariante.

O Wilson tinha tomado um porre para comemorar o décimo oitavo aniversário. O alto teor alcoólico do sangue que corria em suas veias impedira, aliás, o esboço de qualquer reação durante a homenagem que os amigos haviam lhe prestado, substituindo os ovos e a farinha pelos recursos disponíveis àquela hora da madrugada, na volta da balada.

Respingos do vômito que deixara no meio-fio da avenida instantes antes coloriam a camisa azul que trajava. O rosto pálido apresentava uma expressão abatida, enquanto levava as mãos ao cabelo negro e muito enrolado, procurando limpar a sujeira com gestos incertos e pouco efetivos. Encontrando alguma força, os lábios desbotados pelo mal-estar balbuciaram umas poucas frases: - Caaambadaaa de filhooo da putaa!!! Vão tomaaar no cu!! - sentenciou o aniversariante com a voz fraca, inaudível para o resto da turma, que já tomava o caminho do ponto de ônibus.

Eu não havia participado daquela questionável homenagem, afinal nunca curti esse tipo de coisa. “Onde já se viu cuspir na cabeça de um amigo pra comemorar o aniversário dele? Tremenda babaquice. Bom, pelo menos a turma deixou pra fazer isso na volta da balada e não na ida”, pensava enquanto voltávamos da Cave, uma boate no final da Henrique Schaumann, em Pinheiros. Naquela noite, havíamos nos divertido bastante e esperado até a última música para ir embora, não só porque estava legal, mas principalmente porque precisávamos fazer hora. Ninguém estava de carro e os ônibus só voltariam a passar por volta das cinco e meia da manhã.

Não era a primeira vez que ia à Cave. Já havia estado naquela casa em outra ocasião, mas em uma domingueira, daquelas que começam às cinco da tarde e vão até as dez da noite. Agora, a parada era diferente. Pela primeira vez tinha saído à noite para voltar apenas de manhã cedinho. Imaginava a cara dos meus colegas de escola quando contasse minha aventura, voltando de ônibus e tudo mais. O pessoal ia ficar doido. Já podia até imaginar.

Só ficava incomodado quando me lembrava dos meus pais. Me sentia culpado por voltar tão tarde. Mas eu tinha avisado. Meu pai não gostou muito, falou que era perigoso ficar zanzando de madrugada numa cidade grande como São Paulo. No entanto, acabei saindo.

A turma se dispersou depois da farra feita na cabeleira do Wilsão. Um grupo ia mais na frente. Outro um pouco atrás. Por fim, vínhamos eu e o aniversariante, que promovera a balada para garantir que seu décimo oitavo aniversário não passasse em branco. O destino de todos, entretanto, era o mesmo ponto de ônibus na avenida Rebouças, ali perto.

Conhecia o Wilsão há uns três anos. Fazia pouco tempo que eu tinha mudado para o Jardim Rolinópolis, um bairro de classe média na beira da rodovia Raposo Tavares, na região do Butantã, quando ele reforçou o time da rua num campeonato de futebol. Quem o convidou foi o Marcão “Semorre”, que já estudara com ele no Julio Mesquita, um colégio municipal localizado na outra margem da estrada, no Jardim Bonfigliolli. Foi um bom reforço, afinal ele tinha uns três anos a mais que a média do time. Mesmo assim, acabamos derrotados.

Depois desse jogo, fiquei um bom tempo sem vê-lo. Até que no início do ano seguinte, dei de cara com ele em minha nova classe na escola. Eu não esperava encontrá-lo naquele lugar, porque o colégio era longe do bairro, 14 quilômetros adiante na Raposo Tavares, já em Cotia, município vizinho de São Paulo. Além disso, era uma escola particular, cercada por condomínios bacanas, e eu não acreditava que poderia encontrar algum daqueles companheiros de futebol por aquelas paragens. Mas lá estava o meu colega de time. Começamos, então, a bater um animado papo antes do início da aula. De repente o cara ficou sério e me olhou com uma cara invocada.

- Se você contar meu apelido pra alguém, eu quebro a sua cara!

Eu o tranquilizei. Disse que não contaria para ninguém. Afinal de contas, ele era mais velho. Era bom não arrumar confusão. Confesso, no entanto, que não gostei muito daquele papinho de ter a cara quebrada. Só que entendi a preocupação dele. Não devia ser fácil ter um bairro todo te chamando por um horrível apelido e ainda ver-se na iminência de ter o segredo revelado para uma multidão de colegas ávidos por um motivo de gozação.

Além do bairro, tínhamos outra coisa em comum: éramos repetentes. Eu ainda era um novato nessa categoria - tinha acabado de repetir a sexta série -, mas logo nos entrosamos. Aos poucos, fui aprendendo a desempenhar o papel. Você faz cara feia. Fica invocado por qualquer coisa. E, se precisar, dá uns empurrões e fala grosso. Se o cara esboçar reação, você logo ameaça pegá-lo na saída. Depois, fica fazendo cara de terrorista durante o resto do dia para intimidá-lo. Isso geralmente funciona e o cara vem conversar para ver se consegue mudar a situação. Agora, se o cara não se intimidar ou se ele tiver um irmão mais velho, você tem que se virar para manter a panca de valentão. Além disso, durante as aulas você também fica mais folgado. Responde para os professores. Lembro até de uma professora que veio me perguntar, toda irônica, se tinha caído uma pedra na minha cabeça durante as férias. “Papinho furado. Bomba a gente e depois quer que fique tudo igual”, pensei na ocasião.

Havia ainda mais coisas em comum entre nós dois. Além de termos uma certa dificuldade para nos adaptarmos, achávamos quase todos os nossos colegas uns playboyzinhos, filhinhos de papai da Granja Viana, o bairro chique em que a escola estava situada. Tínhamos ainda um outro parceiro, o Breno, um alemãozinho sardento, bem folgado. Ao contrário do Wilsão, que acabara de chegar, e de mim, aluno da escola há pouco mais de seis meses, ele estudava ali fazia bastante tempo.

Mas, sabe como é, ninguém consegue fazer panca eternamente. Acabei me entrosando bem com a classe. O pessoal era legal. O Wilson estudou com a gente até o final do ano. O Breno saiu na série seguinte. Assim se desfez o trio.

Reencontrei o Wilson um ano e alguns meses mais tarde. Estava no ponto de ônibus perto de casa, numa tarde quente de verão no início de 89, quando ele apareceu. Desandamos a conversar. Ele contou que voltara a estudar no Julio Mesquita, onde estava cursando a oitava série, mas fiquei interessado mesmo quando ele falou que andava saindo bastante.

- Pô, agora tem balada todo final de semana. Sábado à noite sempre tem alguma festa no Bonfa e no domingo a turma vai toda pra Cave, uma danceteria muito louca lá em Pinheiros. Você precisa conhecer.

Minha vida andava monótona demais, por isso aquela conversa me interessou bastante. A turma da rua só queria saber de andar de bicicleta e jogar taco, coisa de criança. O pessoal do colégio era meio paradão, nada acontecia. Além disso, eu morava longe da maioria dos meus colegas de escola, o que dificultava qualquer encontro nos finais de semana. De tempos em tempos acontecia alguma coisa legal, mas era raro. E o pior de tudo é que andava sem sorte alguma com as meninas. Assim, logo aceitei quando ele me convidou para ir até a Cave no final de semana.

Antes de nos despedirmos, o Wilson ainda me contou um papo sobre um movimento que estava chegando ao bairro: - Cara, o pessoal aqui do Bonfa tá curtindo muito uma parada aí de rockabilly.

- Rockabilly, o que é isso? - indaguei curioso.

- É o som dos anos 50: Bill Halley, Elvis, Litle Richard e mais uma porção de cantores. Já tem até uns caras lá na Cave que se vestem como naquela época, com jaqueta de couro e topetão.

- Porra, que louco! Não conhecia isso aí, não.

- É legal. Se você for lá com a gente vai ver.

4 comentários:

  1. Engraçado ver como as aventuras da adolescência são parecidas num geral... Você muda o cenário, mas a obra como um todo é algo muito próximo...
    Não tem como não retornar a tempos passados lendo tais histórias... =)

    Em Sampa, Salvador ou Brighton... os jovens estão próximos em suas paixões e descobertas...

    \o/

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  2. É verdade, Chucky!!! Repetindo Dostoiévski, a melhor forma de ser universal continua sendo falar de sua própria vila, rsrs...
    Abraço!!!
    Pedro

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  3. Olá, Pedro! Gostei do seu texto e do seu tema. Também estou escrevendo sobre rockabilly e frequento as festas em São Paulo. Podemos trocar ideias?
    Meu e-mail: carolinafg@gmail.com
    MSN: carolinafg@hotmail.com.br

    Abraços
    Carol

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  4. Claro, Carolina! Também vou querer conhecer seus projetos sobre o tema rockabilly. Mais tarde escrevo para você. Abraço,
    Pedro

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