segunda-feira, 31 de agosto de 2009

O topetudo vai à aula (Capítulo 5)

Atravessei o portão de entrada escoltado por quase uma dezena de olhares surpresos. Os olhos vidrados, o queixo caído e a boca entreaberta de Dona Zefa, a bedel que recebia os alunos, traduziam o espanto geral. A senhora simples, acostumada a alternar momentos de extrema simpatia com broncas ásperas, sequer conseguiu articular uma resposta quando a cumprimentei.

Percorri o longo corredor que levava às classes, experimentando uma situação diferente, afinal, pela primeira vez em toda minha vida escolar, eu era o centro das atenções. Risos, cochichos, olhares espantados e comentários sarcásticos brotavam no rastro das minhas pegadas. Segui andando tranquilo, cumprimentando com a cabeça os conhecidos que encontrava pelo caminho, até avistar o Rato na porta da classe. O rosto branco, salpicado por sardas e decorado por uma cabeleira lisa, de um castanho bastante claro, tinha o sorriso de gozação característico do sujeito. Parei por um instante, ciente da zombaria que me aguardava alguns passos adiante, e em seguida retomei minha trajetória.

- Espera aí, deixa eu adivinhar, você veio de moto ou viu um fantasma? - brincou com ar bonachão o descendente de iugoslavos.

- Engraçado, hein? Deixa de ser zélão, tô no visual rockabilly, não tá percebendo?

- Hahaha, tô brincando. Eu sabia que você curtia essa história de rockabilly, mas não tanto assim. Tá bacana, tá bacana!

- Rockabilly não é só música ou dança. É um estilo de vida que te acompanha vinte e quatro horas por dia - respondi com tom professoral, recitando a bela frase que ouvira de um amigo roqueiro.

Após cumprimentar o Rato, entrei na classe, feliz por ter usado a pomposa frase logo no primeiro diálogo do dia. Algumas meninas que conversavam animadamente na frente da classe viraram o rosto para me ver. Um sorriso simpático e sincero enfeitava o semblante mestiço da Marília, dona de cabelos negros bastante lisos, cortados pouco acima dos ombros.

- Caramba, você ficou louco!!! Que coragem!!! - falou a sempre extrovertida Marília quando me aproximei do grupo.

- É, resolvi adotar o visual - respondi meio encabulado, sentindo minhas bochechas corarem.

- Você é muito louco!!! O que seus pais disseram, cara?

- Não curtiram muito, não. Minha mãe arregalou um olhão enorme e meu pai falou que não era dia de festa.

- Imagino!!! - comentou a Marília antes de cair numa gostosa risada.

- Nossaaa, ficou muuuito legaaal!!! Onde você arranjou essas roupas todas? - perguntou a Camila, entrando na conversa.

- A jaqueta de couro é antiga, era de um tio quando ele era moço, e a cacharrel tava aposentada lá em casa, num canto do armário.

- E essa fivelona?

- Meu pai ganhou de algum amigo muito tempo atrás e eu acabei dominando.

- E você agora vem todo dia assim pra escola? - perguntou a Tati, a mais dondoca das três, contraindo as sobrancelhas loiras sobre os belos olhos azuis.

- É, venho sim. Rockabilly não é só música ou dança. É um estilo de vida que te acompanha vinte e quatro horas por dia - respondi com ar canastrão, feliz por ter uma nova oportunidade para usar minha frase preferida.

Segui caminhando entre as carteiras até o meu lugar, localizado no lado oposto da classe, perto de uma das janelas. Antes de sentar, estiquei a mão para cumprimentar o Nasser, um amigão que meu pai apelidara de Habib, numa alusão à sua origem libanesa. Ele, como meus principais amigos da escola naquela época, o Gabriel e o Everaldo, preferia ignorar minhas manias exóticas, agindo como se nada de diferente estivesse acontecendo. O resto dos alunos, no entanto, estava alvoroçado com a novidade. Ouviam-se cochichos e risadinhas por toda a sala quando o sinal tocou avisando o início da primeira aula. A excitação da turma só diminuiu quando a professora entrou na classe.

- Bom dia, vejo que estão bastante animados - comentou a professora, enquanto dirigia-se para a mesa na frente da sala sem olhar para os lados. Apressada, a jovem professora, que aparentava menos de trinta anos, colocou os livros que carregava sobre a mesa. Depois, pegou um deles e folheou até encontrar a matéria daquele dia.

- Bem, temos muito trabalho pela frente pessoal, espero que tenham feito os exercícios que passei na aula passada - falou a educadora, ainda com o olhar mergulhado no livro de matemática.

Pairava na sala um ar de expectativa. A turma trocava olhares, ansiosa para ver a reação da professora quando visse meu topete. Dona Valéria ergueu os olhos castanhos escuros e apoiou o queixo sobre a mão esquerda, provavelmente pensando em como iniciaria os estudos naquele dia. O ar pensativo, entretanto, foi logo substituído por uma expressão de surpresa. A cabeça da professora parou, levemente inclinada para a direita, fitando o canto da classe onde eu estava.
Por alguns instantes, as sobrancelhas negras permaneceram contraídas junto ao topo do nariz e os lábios, cerrados com firmeza, tornaram-se mais finos que o habitual. Uma suave sacudida de cabeça tirou a educadora do breve momento de transe, provocando algumas risadas entre a turma.

- Bem, vamos ao trabalho - disse a professora, afastando a cadeira e levantando-se. Enquanto ela escrevia na lousa a primeira tarefa do dia, aproveitei para dar uma última ajeitada na gola do casaco, pois sabia que o dia seria longo.

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