sexta-feira, 11 de fevereiro de 2011

Surge a Gator's (Cap. 16/Parte 3)


Sentado sobre o chão duro da quadra, reclinei meu tronco para trás, escorando-o sobre os braços esticados que mantinha apoiados no chão. Minha cabeça seguiu o mesmo movimento, fazendo com que meus olhos se fixassem por alguns instantes nas parcas estrelas do poluído céu paulistano. “Ééé, devia ter ficado em casa esta noite.”

Um ou outro roqueiro ainda disse alguma coisa, mas nada de importante, nada que alterasse qualquer coisa. A reunião estava terminada.

Endireitei novamente o tronco, depois bati uma mão contra a outra para tirar a poeira do piso. Antes de me levantar, puxei a manga esquerda da jaqueta, descobrindo o relógio que carregava no pulso.

-Caralho, já são mais de três e meia - comentei com o Cabeção enquanto me levantava.

-Essa noite já deu o que tinha que dar. Vamos nessa, Claudinho, que não vira mais nada.

-S`imbora - concordei com o amigo roqueiro, esticando a mão para ajudá-lo a levantar.

Segui conversando com o Cabeção na direção do canto da quadra onde estavam as meninas. No entanto, não concluímos a viagem, pois a Taciana logo veio ao nosso encontro.

- E aí, conseguiram acertar tudo? Pensei que essa conversa nunca fosse acabar - comentou a garota de cabelo castanho claro, cujos cachos curtos apenas tocavam o ombro.

- Demorou, né? Mas pelo menos ficou tudo esquematizado - respondeu o Cabeção, abraçando a namorada com o braço direito. - Vamos embora?

- Vamos, vamos sim - respondeu a garota, minha conhecida desde o período pré-rockabilly.

Como a noite já estava mais que encerrada para mim, resolvi me despedir do casal. Após beijar a Taciana e apertar a mão do amigo roqueiro, fiz um breve aceno de mão para o grupo de garotas reunido no canto da quadra. Me despedia delas por mera formalidade, pois não fazia nenhuma questão de ser notado naquele momento. Mas, quando me virava para ir embora, ouvi uma voz suave me chamando:

- Claudinho, você já vai?

- É, é, já...já tô indo - disse, voltando-me novamente na direção do grupo, ciente de quem era a dona daquela voz. - Agora, já não vira mais nada.

- Nem conseguimos conversar hoje. Também, andamos a noite toda, né?

- É verdade. Vocês já vão embora ou ainda vão ficar por aí? - perguntei, começando a me animar com a conversa.

- Não sei, vou ver o que o Nique quer fazer.

- Ah, é, o Nique - respondi com ar patético, voltando a ocupar meu insignificante posto no universo, justamente quando o garoto também chegava àquela parte da quadra.

Esbanjando a auto-confiança que o caracterizava, o Nique entrou na conversa: - Já vai nessa, Claudinho? Tá cedo ainda, vamos procurar mais uma festa aí pelo Bonfa.

- Valeu! Já deu minha hora. Vou nessa.

- Beleza, amanhã a gente conversa pra agitar as coisas da Gator’s.

- É isso aí, até mais - respondi, sem conseguir esconder o desânimo que me tomava.

Ergui a gola da jaqueta, enfiei as mãos nos bolsos e saí andando. Sem a gravidade de minutos antes, a turma de roqueiros continuava a conversar. As risadas altas e o vozerio animado sinalizavam que ninguém estava muito preocupado com o sono dos moradores das casas vizinhas à praça.

Em minha caminhada passei pelas ruas onde estivera no início da noite. A iluminação era a mesma de horas antes, mas a escuridão parecia maior. Nas janelas das salas não se via mais a luminosidade azulada das televisões. Tampouco havia faróis de carros para iluminar a via e, sobretudo, eu estava sozinho, entretido com minhas aflições.

O silêncio que demonstrava externamente durante o passeio solitário não refletia o falatório agitado que dominava minha cabeça. Impiedosas, as vozes pareciam ajudar meus ombros a se arquearem ainda mais, fazendo com que meus olhos mirassem cada vez mais fundo o asfalto que aguardava os meus passos. A impressão do fracasso também parecia tomar forma física, se transformando numa estranha sensação, pesadamente acumulada no meu peito.

“Puts, que merda, o Nique é um cara rabudo mesmo. Além disso, é bom de conversa. É, acho que a Carol tem razão. Devo ser o cara mais desinteressante da turma, talvez até do bairro ou da cidade... Quem sabe o Cabeção e uns outros excluídos como eu não querem formar uma outra turma? Ou talvez eu possa criar uma gangue com o Supondo, lá em Santos. Ou então, sozinho mesmo. Que nome eu poderia dar pra turma? Tem que ser de um bicho, em inglês. Bem, mas agora não vou lembrar o nome de porra nenhuma”, pensava enquanto percorria as silenciosas ruas do Bonfigliolli, escutando apenas o barulho distante dos carros que passavam pela rodovia.

sexta-feira, 28 de janeiro de 2011

Surge a Gator's (Cap. 16/Parte 2)

Levantando do piso da quadra, onde até então estivera sentado como simples observador do debate, o autor do símbolo resolveu entrar na conversa. Uma expressão de entusiasmo tomava conta do rosto moreno do rapaz. Os dentes extremamente alvos da arcada superior mordiam levemente o lábio inferior, enquanto ele enfiava a mão no bolso da jaqueta em busca do papel onde esboçara a figura do jacaré topetudo. Com um rápido movimento, pegou a folha e desdobrou-a. Seus olhos negros fixaram-se sobre o desenho por um breve instante, antes que começasse a falar:

- A gente pode escrever Gator’s no alto e colocar a data embaixo do desenho. Daí, eu dou uma incrementada, faço um círculo em volta e tá pronto o estandarte. Vai ficar bacana - argumentou o Fernandinho, apontando com o indicador direito para o papel que mantinha seguro pela mão esquerda. - Alguém tem uma caneta? Preciso de uma caneta.

As mãos dos roqueiros vasculharam bolsos de jaquetas e calças, até que o Morcegão encontrasse uma esferográfica. O plástico que recobria a carga estava levemente quebrado no lado oposto à ponta da caneta, que também já não tinha tampa.

- Tá bem detonada, mas ainda tá funcionando - disse o Morcegão, esticando a caneta para o Fernandinho.

O desenhista da turma pegou o objeto, se agachou e esticou o papel sobre o piso de cimento da quadra. Cercado pela turma, amontoada ao seu redor, acrescentou ao desenho os detalhes que acabara de mencionar.

- Muito louco! - comentou o Antero.

- Porra, bem legal! - disse o Tieta, abandonando o ceticismo inicial e manifestando sua aprovação, como vários outros roqueiros. - Vamos votar pra ver quem aprova.

- É isso aí! Fernandinho, deixa a galera toda ver o desenho pra gente votar - falou o Nique, fazendo com que o desenho passasse de mão em mão.

Depois que todos olharam, o desenho parou novamente nas mãos do Fernandinho. Logo em seguida, o Nique deu início à votação, questionando um a um os integrantes da turma:

- Wanderley?

- Bacana, gostei.

- Serginho?

- Pô, bem rocker!

Os votos abertos elegeram unanimemente o novo estandarte da Gator’s, gerando grande vibração entre os integrantes da turma. O BB, entretanto, fez o pessoal se aquietar com uma nova questão: - Tá, o desenho tá feito, mas quem vai fazer a tela pra gente pintar as camisetas e os estandartes?

- Huum, o Marcio aí do bairro faz uns trampos com silk-screen. A gente pode pedir pra ele - lembrou o Daniel.

- Caralho, mas o cara é careca. Ele vai é querer arrebentar quem for lá falar com ele - comentou o Luís, demonstrando uma vez mais o respeito que tínhamos pelos carecas.

- Se ligaa!! Esqueceu que meu irmão também é careca, amigo dele. Eu falo com ele e ele fala com o Marcio, não tem erro não. Ei, os caras também não são tão maus assim - completou de forma convincente o Daniel, um garoto magro, de estatura mediana, cabelos e olhos castanhos, mas, sobretudo, irmão de um dos caras mais temidos da região, o Paulo Careca.

- Pô, então tá legal, você fala com ele. Vê quanto sai pra fazer a tela e a gente racha entre todo mundo - concordou o Nique. - Isso fica decidido, mas tem outra coisa que a gente queria falar.

- É, pessoal, essa é uma parada séria. Não é qualquer um que vai poder usar o estandarte. Pra andar com uma jaqueta com nosso símbolo o cara tem que ser rocker meeesssmo, por isso a gente bolou um esquema pra esse início da Gator’s - ressaltou com autoridade o Tieta, despertando olhares curiosos de boa parte dos topetudos.

- A gente quem? - perguntou o Cabeção sem entender onde o Tieta queria chegar.

- A galera mais antiga. O pessoal que trouxe o movimento pro bairro. A gente se reuniu e decidiu que no começo só nós vamos usar o estandarte. Depois, vamos aprovando quem vai entrar.

- É isso aí - disse o Nique, entrando uma vez mais na prosa. - Só eu, o Tieta, o Wilson, o Denis Demente, o Píter e o BB vamos usar o símbolo da Gator’s nos primeiros meses, pra turma ganhar respeito no meio rockabilly. Depois a gente vê quem vai entrar.

A notícia derrubou meu entusiasmo como um capoeirista habilidoso derruba seu oponente. Pensei em falar algo, mas as palavras ficaram engasgadas em minha garganta. Logo, um tímido burburinho se espalhou pelo grupo. Ninguém, no entanto, se arriscou a contestar a ideia recém-apresentada. Esse comportamento reforçava ainda mais a posição dos seis pioneiros, deixando clara a influência que exerciam sobre o grupo.

“Caramba, tô tretado com meio mundo por ser rockabilly e os caras vêm dizer que ainda não tenho condições pra integrar a Gator’s. Essa história não pode ser verdade. Os caras estão criando uma elite dentro da turma e, o que é pior, me deixaram fora dela. Porra, justo eu que ando com a galera há um tempão. Não pode ser verdade, puta injustiça!!! Sacanagem”, pensava, inconformado com a nova condição.

Dessa vez, ao contrário do que acontecera minutos antes, não ocorreu nenhuma votação. O assunto estava decidido. Todos haviam escolhido o estandarte. Todos iriam pagar pela tela, mas, ao menos inicialmente, apenas meia dúzia poderia carregar o símbolo nas costas. Mais uma vez na noite, me sentia rejeitado. Primeiro fora a decepção de ver a Carol em outros braços e, agora, tinha que aguentar a surpresa de ser excluído da gangue.

quarta-feira, 12 de janeiro de 2011

Surge a Gator's (Cap. 16/Parte 1)

As meninas que nos acompanhavam ficaram conversando num canto da praça, enquanto nos espalhávamos pelo centro da quadra de futebol deserta e mal iluminada para discutir a pauta da noite. O clima constante de brincadeira fora substituído por uma postura grave, que comprovava a importância do assunto que iríamos colocar em discussão. Dotado de um natural espírito de liderança, o Nique iniciou a conversa.

- Bom, galera, vocês já viram o desenho do Fernandinho? Eu acho que ficou muito louco aquele jacaré topetudo como símbolo da Gator’s. O que é que vocês acham?

- Bacana, gostei - respondeu o Belo sacudindo a cabeça afirmativamente e recebendo o apoio de vários dos roqueiros espalhados pela quadra.

- Também achei legal, mas ainda tá muito cru, falta mais coisa pra ficar com cara de um estandarte de verdade - ponderou o Tieta.

Os lábios do Nique se contorceram para a direita formando uma careta com ar pensativo, ao mesmo tempo em que a cabeça balançava para cima e para baixo demonstrando sua concordância com a reflexão do outro roqueiro. Antes que ele falasse qualquer coisa, o Fabrício fez uma sugestão.

- Acho que o estandarte tem que ter um ano pintado, como fez o pessoal da The Ratz.

- Boa ideia, mas que ano? - questionou o Nique.

- Sei lá, talvez 1954. Não foi esse o ano em que foi criado o rock?

- Ééé, foi aí que o Elvis gravou That’s All Right - comentou o Flávio, o único gordinho da turma, entrando na prosa.

- Calma aí, o Bill Halley gravou antes disso. Em 53, ele lançou “Crazy Man Crazy”, o primeiro disco de rock da história. E além disso os caras da Ratz já têm 54 estampado no estandarte deles - ponderou em tom professoral o Duque, conhecido por sua erudição quando o assunto era rockabilly.

- Sei lá, meu, existem trocentas histórias sobre a criação do rock. Quem disse que essa aí que tá certa? Mas você tem razão, se a gente colocar 54 os caras da Ratz vão falar que copiamos a ideia deles - comentou o Tieta.

Abrindo os braços e fazendo uma careta brincalhona, o BB colocou mais lenha na fogueira: - E daí, tamo copiando mesmo, não tamo? Os caras que se fooodam! - disse o grandalhão da turma, tirando risadas de alguns e protestos de outros.

Até então civilizado, o debate virou uma feira livre com vinte topetudos querendo falar ao mesmo tempo. O Tieta e o Nique precisaram gritar para colocar a conversa novamente no rumo.

- Caralho, pessoal!!! Assim não vamos resolver nada! - gritou o Nique em tom exaltado.

- É isso aí, pessoal, vamos conversar que nem gente - emendou o Tieta, fazendo com que o silêncio se restabelecesse no meio da quadra.

- Então, que tal se a gente colocasse 55? Ninguém tem esse ano estampado e foi o ano em que a coisa começou a esquentar mesmo - sugeriu o Nique, já mais calmo, recebendo acenos de cabeça afirmativos de boa parte dos presentes.

- Legal, pode ser - comentei, saindo do silêncio em que me mantivera até aquele instante.

- É, bacana!!! - concordou o Wilson, com a mão esquerda coçando o queixo e o rosto tomado por uma expressão pensativa.

- Tá, mas aí como é que fica o desenho? Onde entra essa data? - questionou o Tieta.

sexta-feira, 17 de dezembro de 2010

Noite de balada (Cap. 15/Parte 6)

O clima de tensão ia enfraquecendo enquanto nos espalhávamos pela íngreme descida que levava ao Bonfigliolli, deixando para trás os "funções" e a garagem enfeitada pela grande bandeira do Brasil. Taciturno com a visão do Nique e a Carol de mãos dadas, resolvi ficar na retaguarda do grupo de andarilhos, trocando palavras esporádicas com o Fabrício e o Wanderlei.

Conforme andávamos, a música ia cedendo espaço ao som do falatório e dos saltos das botas batendo contra o calçamento. Os paralelepípedos da rua formavam um piso bastante liso para as solas de couro da botina negra que calçava, exigindo atenção extra durante a descida daquela que provavelmente era a ladeira mais íngreme do bairro.

A caminhada do sábado à noite já era um acontecimento frequente para a turma, assim como a reunião na Cave nas noites de sexta. Todo final de semana em que a programação não incluía uma balada rockabilly em outro ponto da cidade, geralmente no Centro ou em Pinheiros, saíamos vagando pelas ruas da redondeza atrás de alguma festa. Andávamos bastante, percorrendo diversos bairros. O esforço era recompensado pela economia que esse tipo de programa proporcionava, afinal não pagávamos para entrar nem para beber, gastávamos apenas o solado de nossas botas. As noites quentes do início de ano eram outro estímulo, apesar do frio não ser realmente uma barreira quando se tem 15 ou 17 anos.

Após descer a rua da caixa d’água, andamos alguns quarteirões planos antes de encarar outra descida, que nos levaria à principal avenida do bairro. Meus olhos miravam o asfalto que substituíra o paralelepípedo no pavimento das ruas, mas meu pensamento estava distante, dominado por uma incômoda “dor de corno”. A madrugada chegava trazendo consigo uma gostosa brisa, que refrescava os corpos acalorados pelo rock’n’roll.

- Tá pensando na morte da bezerra? - brincou o Píter, parando no meio da rua para esperar que eu o alcançasse.

- É, tô viajando - respondi, levantando a cabeça e arregalando os olhos na direção do amigo roqueiro. Já estávamos na avenida principal, onde era possível avistar o Julio Mesquita, por isso resolvi brincar com o Píter. - Caramba, vocês não conseguem ficar longe dessa escola nem de final de semana. Nunca vi tanta paixão por um lugar!

- Deus me livre, não quero botar os pés nesse lugar de novo. Só passo aí durante a semana porque é o ponto de encontro da turma - respondeu o rockabilly despeitado, fazendo pouco caso da escola em que estudara até pouco tempo e que perdera muitos dos nossos naquele início de ano. A maioria deles havia migrado para um supletivo em Pinheiros, buscando um caminho mais simples para concluir os estudos.

Subimos a avenida e andamos mais alguns minutos por ruas menores até chegar à casa em que acontecia a outra festa, localizada no outro extremo do bairro. Feita para arrecadar dinheiro para a formatura dos alunos de outra escola pública da região, a festa estava realmente cheia. Além dos desencanados que se contentavam em ficar espalhados pelas imediações da festa, havia uma pequena multidão esperando para entrar.

A casa era mais bonita e maior que a anterior, mas com certeza não comportaria a quantidade de pessoas que estava por ali. Para piorar, nossa chegada deixou os organizadores, que já estavam bastante preocupados com a lotação do lugar, ainda mais agitados.

O Wilson e o Antero foram até a porta averiguar a situação. Logo depois voltaram com notícias pouco animadoras.

- Puts, aquela porra tá lotada! Não cabe mais ninguém lá dentro, não sei como ainda estão deixando o pessoal entrar - constatou o Antero.

- É melhor desencanar de entrar, aquilo ali tá a maior muvuca! - completou o Wilson, recebendo a anuência do resto da turma.

Apesar da grande quantidade de pessoas, o ambiente do lado de fora estava amistoso, com a presença de muitos conhecidos da região. Por isso ninguém se queixou de ficar na rua batendo papo. O grupo que se aglomerava diante da porta, no entanto, não tinha o mesmo pensamento. Uma porção de jovens exaltados começou a forçar o portão de madeira que acabara de ser fechado, fazendo com que o dono da casa se arrependesse de ter resolvido fazer a festa. Nenhum topetudo estava entre os bagunceiros, mas a nossa presença nas imediações fez com que o fato ficasse associado por muito tempo aos rockabillies do bairro.

Dentro da casa, o pessoal da organização, composta por alguns formandos e pelos donos da propriedade, ameaçava chamar a polícia para dar um fim à situação.

- Se os gambés aparecerem vocês sabem pra quem vai sobrar, não sabem? - interrogou o Antero, no meio de uma roda em que proseavam meia dúzia de roqueiros, inclusive eu.

- É, acho que é melhor sair de rolê - emendou o Luís, antes de lançar uma das suas tradicionais cusparadas, finas e rápidas, rumo ao meio fio.
Passaram-se alguns minutos antes que conseguíssemos reunir toda a turma para colocar o pé no asfalto novamente, dando continuidade à nossa peregrinação noturna. Agora, entretanto, não tínhamos caminho certo a seguir.

A decepção ainda me perturbava, mas não me sentia tão triste quanto antes. A conversa furada com os amigos havia espantado boa parte dos pensamentos pesarosos. Por isso tratei de fazer o caminho de volta na companhia dos mais animados. Àquela altura, aliás, a turma já andava com destino certo, uma grande praça do bairro, atendendo à ideia dada pelo Tieta de aproveitarmos o fim da noite para discutir a criação da Gator’s.

sexta-feira, 22 de outubro de 2010

Noite de balada (Cap. 15/Parte 5)

O Júnior Neguinho despontou na porta da garagem com a camiseta molhada de suor. Os olhos do jovem negro foram de um canto ao outro da rua até me acharem alguns metros à direita. Seu musculoso braço esquerdo estava dobrado com a mão erguida segurando a jaqueta sobre o ombro. Ainda balançando no ritmo da música, veio na minha direção.

- Caramba, que calor, dancei pra caralho! - disse enquanto encostava ao meu lado no carro.

- É, tá quente lá dentro, também saí pra tomar um ar.

- Qualé a desses caras aí atrás?

- O baixinho ali com cara de função tá falando que vai abrir uma loja de botas.

- Esse cara é um cuzão mesmo. Fica todo folgado porque conhece uns malacos por aí. Mas é bom a gente ficar ligado, esse tipo de cara só se garante maquinado. Vou dar um toque pro BB - concluiu o Júnior Neguinho, desencostando lentamente do carro.

Talvez os caras do outro lado da rua, também moradores da região, não pretendessem nada mais sério apesar das bravatas do baixinho. Aquele tipo de provocação, no entanto, fazia o meu sangue ferver.

A sessão de músicas rockabillies finalmente terminou, cedendo espaço para a house. A troca fez com que os ocupantes da pista de dança logo se alterassem, com os rockabillies sendo substituídos por gente que gostava de música mais nova. Os primeiros topetudos suados despontaram no portão da casa, espalhando-se em pouco tempo pela calçada. Avisados pelo Júnior Neguinho, o Tieta e o BB tentavam aglutinar a turma com discrição e sem dar muitas explicações.

Um clima de tensão tomava a pequena rua da Vila Gomes. Os rapazes nos fitavam com olhares desafiadores, mas as provocações explícitas haviam cessado. Fazendo-se de desentendidos, alguns roqueiros ajeitavam os topetes - desmanchados durante a dança - diante de vidros de carros estacionados pela rua. Outros, mais afeitos a confrontos, retribuíam os olhares e faziam poses provocativas no melhor estilo James Dean, com direito a cigarro no canto da boca e mãos nos bolsos.

Os dois grupos, entretanto, não pareciam determinados a entrar em choque. As discretas provocações criavam um equilíbrio que satisfazia a ambos. Ninguém estava disposto a dar o passo rumo ao outro lado da rua que desencadearia a briga.

- Essa festa já deu o que tinha pra dar. Vamos nessa - sugeriu o BB.

- É isso aí! - concordou o Tieta. - Vamos só esperar o Duque e o Morcegão que estão arrumando os discos lá dentro.

- Beleza! Vou pegar uma breja e já venho, não deixem a turma se dispersar. Vocês também querem? - perguntou o BB, olhando para mim e para o Tieta.

- Brigadão - respondi negativamente, enquanto o Tieta balançava a cabeça concordando com a proposta do amigo.

O Duque e o Morcegão logo apareceram. A pilha de discos original estava agora dividida em duas, cada uma delas carregada por um dos garotos. Pouco depois apareceu o BB, carregando uma porção de latas de cerveja e convocando a retirada da turma.

- Vamos nessa, pessoal! Temos outra festa pra agitar - chamou o roqueiro, distribuindo as latas entre a galera. - Haha, peguei nosso cachê em cerveja!

sexta-feira, 1 de outubro de 2010

Noite de balada (Cap. 15/Parte 4)


Casais de dançarinos revezavam-se no centro da pista, cercados pelos demais roqueiros, cujos pés também não paravam, dançando com animação nas áreas periféricas do salão. Os passos exigentes logo começaram a provocar calor nos dançarinos. Previdente, o Morcegão interrompeu sua dança, sumiu dentro da casa por um instante e reapareceu carregando uma cadeira. O caçula da turma, de pele bem morena e cabelos negros, dono de um queixo fino e proeminente, ajeitou a peça num canto da garagem, colocando o casaco sobre o encosto. Logo, muitos o imitaram, fazendo com que se formasse uma pilha de jaquetas.

A voz grossa do vocalista do The Platters ressoava pelas caixas de som, diminuindo o ritmo da festa com a romântica The Great Pretender, quando vislumbrei a Carol do outro lado do salão. A visão fez com que meu coração acelerasse e meus olhos parassem sobre a bela garota. Ela esticou o braço direito e acenou de forma simpática, com um belo sorriso no rosto. Respondi com um cumprimento acanhado. “É agora. Tenho que ir lá falar com ela.”

Gotas de suor brotavam na minha testa e sobre os meus lábios no momento em que decidi convidá-la para dançar. Estufei o peito, arrumei a gola da jaqueta e atravessei o salão desviando dos dançarinos, com o estômago fervendo de nervosismo. Estava perto quando vi o Nique se aproximar dela e puxar conversa. Passei reto, sem ser notado, enquanto os dois começavam a dançar, trocando palavras melosas.

O Nique era sempre um concorrente forte quando o assunto era alguma garota. Por isso, a visão dos dois dançando no meio da garagem me fez murchar. Desanimado, encostei em uma parede e fiquei remoendo pensamentos de autocompaixão. “Que merda, só me lasco mesmo.”

Enquanto eu mordia o lábio em um dos cantos do salão, o Nique acariciava os cabelos ondulados da Carol e enchia seus ouvidos de palavras divertidas. Prevendo o final da história, resolvi arranjar algo para beber antes de sair da garagem. A música e a dança já não me interessavam mais quando cruzei a porta de entrada da casa em busca de um copo de refrigerante. Tampouco me importei com os olhares curiosos que me lançaram quando entrei na sala, repleta de familiares e amigos da aniversariante que tinham se refugiado da invasão roqueira à festa. Vasculhei o ambiente com os olhos até achar uma mesa com refrigerantes, alguns sanduíches e um isopor com cervejas. Enchi um copo com guaraná e peguei um cachorro quente, que mastiguei com a cara entediada.

Saciado, resolvi atravessar novamente a garagem e passei pelo portão de ferro que separava a casa da rua. Lá fora, encostei na lateral de um carro estacionado ali perto. Meu desânimo contrastava com a agitação dentro do salão, onde meus amigos dançavam animadamente ao som de Carl Perkins.

Um grupo de rapazes mais velhos conversava do outro lado da rua. O assunto, no entanto, não era dos melhores. Depois de vários meses andando com a turma roqueira, eu aprendera a reconhecer certos sinais de perigo. Havia as gozações tentando nos diminuir e também as caras desafiadoras procurando provar que não éramos de nada.

A minha presença motivou dois deles a simularem uma dança, satirizando os passos de rock’n’roll sob os risos dos demais companheiros. Continuei encostado no carro, imóvel e com os braços cruzados, fazendo-me de desentendido. Eles não eram muitos, poderíamos encará-los, mas um comentário me deixou preocupado.

- Rapaziada, acho que vou abrir uma loja na segunda-feira. Pra vender só bota e jaqueta de couro - disse em tom provocativo um sujeito baixo e forte, que eu conseguia ver apenas pelo canto do olho. Parado no meio da rua com as mãos no bolso, ele não tinha o jeito fanfarrão dos outros rapazes. Sua fala era segura e convincente.

sábado, 24 de julho de 2010

Noite de balada (Cap. 15/Parte 3)


Cinco ou seis quadras, irregulares e repletas de subidas e descidas, separavam o local em que o Tieta morava da casa do Nique. Apesar de próximo, nosso ponto de encontro naquela noite já estava em outro bairro, a Vila Gomes.

Após dobrarmos uma esquina, avistamos um ponto de agitação no fim da íngreme descida que levava à casa do Nique. Espalhados pela calçada diante da residência, sentados ou em pé, conversando em pequenos grupos, estava boa parte daquela que viria a se transformar na Gator's. O grupo estava acompanhado por algumas meninas, simpatizantes do rockabilly, mas que não aderiam aos nossos trajes de época.

Próximo ao meio-fio, o Duque conversava com o Fabrício. Quase uma dezena de discos estava acomodada sob o braço direito do garoto magro, de estatura mediana, cabelos negros muito lisos e um nariz fino e grande, onde duas amplas narinas se destacavam.

- Legal, cara, você também trouxe uns discos - disse o Duque com uma expressão de satisfação desenhada no rosto assim que me viu.

- Opa, é pra reforçar nosso arsenal esta noite.

- O Nique foi lá dentro pegar uns outros. Ele tem uns legais do Stray Cats.

- Bacana! E quem cuida deles esta noite?

- Xaa comigo, pode passar seus discos que esta noite eu assumo. Vamos fazer uma sonzeira nessas festas - falou o Duque assumindo um ar responsável.

O barulho de saltos de botas batendo apressadamente contra as lajotas que calçavam a garagem anunciou a chegada do Nique. O garoto pequeno - de corpo franzino e cabelos castanhos - apareceu trazendo mais uma porção de discos.

- S’imbora, cambada. Vamos nessa que eu quero dançar o rock’n’roll - gritou o Nique, inflamando o pessoal, ao mesmo tempo em que fechava o portão da casa.
- É isso aí, vamos nessa - concordou o Cabeção, cujo braço direito abraçava os ombros da Taciana, sua namorada.

Os roqueiros que estavam sentados na calçada se levantaram, batendo com as mãos contra as calças para tirar a poeira que se prendera ao tecido. Os outros se viraram e começaram a andar, seguindo o trio formado por Nique, Tieta e Wilsão, responsável por guiar a turma naquela noite de badalação. O grupo voltou pela ladeira que eu acabara de descer, tomando o rumo da alta caixa d’água que se destacava na paisagem da Vila Gomes como um castelo medieval. Estávamos em cerca de 30 pessoas, pelo menos dois terços eram rapazes. Íamos andando despreocupados, em marcha lenta, espalhados pelas ruas do bairro.

O poperô que saía das caixas de som da festa se esparramava pelas vias da região, fazendo-se ouvir a quadras de distância. Cabia a nós melhorar o nível da festa, ao menos no nosso ponto de vista. A balada rolava na garagem de uma casa em frente à caixa d’água, cujo portão estava enfeitado com uma enorme bandeira do Brasil.

A rua estava cheia de gente. Boa parte da moçada recostada nos carros estacionados diante da casa virou a cabeça para ver a chegada de nossa exótica turma de roqueiros. Olhares de surpresa, repulsa e até de satisfação podiam ser vistos nos semblantes dos rapazes e meninas que já estavam na festa.

Algumas garotas, excitadas, correram para dentro da garagem em busca da dona da festa. Amiga do trio que nos guiava naquela noite, a menina nos recebeu com simpatia. Nossa presença causava sempre apreensão nos anfitriões, principalmente nos pais do promotor da festa, mas simbolizava também um considerável status ao evento visitado. Afinal, os roqueiros do bairro não iam a qualquer festinha.

Paramos por alguns instantes diante da casa, jogando conversa fora. Meu exigente olhar de adolescente vasculhava o local em busca de belas garotas. Possíveis perigos também eram analisados com cuidado por minhas vistas treinadas. Determinado, o Duque entrou na casa em busca do disc-jóquei. Os discos de rockabilly formavam uma grande pilha sob um de seus braços.

Não demorou muito para que as caixas de som vibrassem com o rockabilly de Buddy Holly. Atraídos pela música, começamos a entrar na garagem, capitaneados pelo BB, o melhor dançarino do grupo. Sorrisos de satisfação brotavam nos rostos dos integrantes da turma, enquanto entravam com panca de James Dean no apertado recinto da festa, uma garagem com espaço para apenas dois carros.

As pessoas que estavam no local abriram caminho para o nosso grupo. Espontaneamente, formamos um círculo, cujo centro logo foi dominado por quatro casais de dançarinos. Os outros convidados nos cercavam, olhando curiosos nossos passos de dança.

O BB e a Fabiana logo empolgaram a galera. O garoto alto, de ombros largos, olhos e cabelos castanhos mostrava um molejo impressionante. Seus pés moviam-se ligeiros ao ritmo do rock’n’roll. Os braços fortes conduziam com firmeza o corpo elegante da parceira. A morena bonita, de cabelos negros e lisos, se movia graciosa, executando os passos com precisão. Em alguns instantes os corpos se aproximavam frontalmente, quase se tocando. Outras vezes, a jovem girava sob o braço levantado do roqueiro, sendo levada ao outro extremo da pista. Por um momento, o braço direito dele e o braço esquerdo dela ficaram retesados, separando os dois dançarinos. Com leveza, ela voltou em um rápido salto, entregando-se aos braços do colega de dança. No ar, seu corpo foi conduzido para um lado e depois para o outro, exibindo as pernas esticadas. Além da força dos braços, BB usava o apoio das pernas flexionadas para sustentar a menina. O movimento dava o embalo necessário para o principal momento da dança, quando o corpo dela saía do apoio sobre uma das coxas dele e era conduzido para o alto. Os braços do BB se esticavam, fazendo com que o corpo da parceira ficasse quase de ponta-cabeça, com os pés muito próximos do teto baixo da garagem. Após parar por um breve instante nessa posição, a menina voltava com as pernas estendidas vindo de encontro ao corpo do parceiro. Com agilidade ele as desviava para o lado e se inclinava, fazendo com que ela girasse sobre suas costas e caísse em pé do outro lado com a firmeza de uma ginasta, arrancando assobios e aplausos entusiasmados dos espectadores.

Rival do BB quando o assunto era dança, o Denis também fez bonito. Dono de um estilo mais arrojado, conciliava os passos de dança com acrobacias. Após rodopiar a parceira uma série de vezes, inclinou-se para a frente e esticou os braços invertidos entre as próprias pernas. A menina segurou as mãos dele, deixando-se puxar com energia e deslizando velozmente entre as pernas do jovem roqueiro. Após um ágil movimento do parceiro, a menina parou com graça diante dele, fazendo topetudos e convidados vibrarem.

terça-feira, 6 de julho de 2010

Noite de balada (Cap. 15/Parte 2)


Eram quase dez horas quando parei diante do sobrado em que morava o Wilsão. A casa de frente estreita, separada da rua por um portão baixo, era pintada em um tom claro de amarelo e geminada com duas construções do mesmo tipo. Como sabia que a campainha estava desativada, apoiei os discos no muro que dividia as casas e resolvi chamá-lo à moda antiga. As palmas das minhas mãos se chocaram com força meia dúzia de vezes, sendo seguidas por um alto assobio.


Um curto período de silêncio se seguiu até que a cortina da janela da sala se abrisse.

- Oi, Claudinho! - falou o Vagner, irmão mais novo do Wilson, colocando a cabeça pra fora da janela.

- Oi. Seu irmão está?

- Espera aí, vou ver - disse o garoto, antes de sumir dentro da casa.

Sentei-me na calçada com as costas apoiadas no portão de ferro e as pernas dobradas. Sem ter o que fazer enquanto esperava, levei minha mão direita até uma folha seca de eucalipto caída sobre o chão áspero do calçamento. Comecei a despedaçá-la, lentamente, acompanhando sempre as fibras da folha. Quando restavam apenas pequenos pedaços, depositei-os na palma da mão esquerda e atirei-os sobre a calçada, como se fosse um punhado de confetes.

O barulho do motor de um Gol prateado, que despontava a grande velocidade no início da rua, chamou minha atenção. Meus olhos acompanharam a aproximação do automóvel e depois viram ele sumir no final da via. “Caramba, isso lá é velocidade pra uma ruazinha estreita como essa?”
- Tá dormindo, Claudinho? - falou o Wilsão aparecendo na porta.

- Se liga. Não sou mendigo pra ficar dormindo na rua - retruquei, virando a cabeça para o lado da porta.

- Será que não, hein? - provocou meu amigo, antes de começar a descer a pequena escada que levava ao portão da casa.

Levantei-me apoiando uma das mãos na grade do portão. O Wilsão saiu logo depois, vindo me cumprimentar. A palma de minha mão direita escorreu rapidamente sobre a dele, em seguida meu braço se encolheu alguns centímetros e a minha mão se fechou, voltando para encontrar o punho do Wilson e encerrar a tradicional saudação da turma.

- Legal, você trouxe os discos. Vamos ver o que vai pegar nessas festas de hoje.

- É, peguei uns oito discos. Acho que o Nique e o Duque também vão levar alguns.

Andamos um pequeno trecho e viramos à esquerda na esquina seguinte, tomando o rumo da casa do Tieta, um quarteirão e meio adiante.

- E aquele colégio que você estuda como é que tá? A playboizada da Granja ainda tá enchendo o saco?

- Não, agora tá mais calmo, alguns folgados saíram da escola. Mas você precisa ver as minas que entraram lá nesse começo de ano, uma mais gata que a outra.

- É? Na sua classe?

- Não, na oitava, cada gata. Tem até uma que parece que frequentava a House, mas eu não lembro dela lá não.

- Poperôzinha?

- É, mais ou menos, mas é bem bonita, tem um corpão, gostosa pra caramba. Só que ainda não é minha amiga, nunca falei com ela.

- Deixa de ser devagar, Claudinho. Você é muito tímido.

- É meu jeito, fazer o quê? - respondi, incomodado com a constatação, assim que chegamos à casa do Tieta. Também um sobrado, a residência se diferia em alguns aspectos da que visitara pouco tempo antes. O primeiro piso da casa, geminada de apenas um lado, ficava bem acima do nível da rua, enquanto a entrada era repleta de plantas e flores, um gosto que a mãe do Tieta cultivava há bastante tempo.

- Tietaaa - gritou o Wilson assim que paramos em frente à casa. Nosso amigo apareceu na janela do quarto, no andar superior da casa.

- Porraaa, vocês demoraram, hein?

- O Wilson que tava enrolado - cutuquei.

- Tava brigando com o cabelo, é? Claudinho, você sabia que o cabelo do Wilson é tão duro que ele precisa fazer musculação pra pentear? - mexeu o Tieta com um sorrisão no rosto, feliz por dar início a mais uma sessão de provocações.

- Vaaai se foder! Seu cabelo não é muito melhor, não - respondeu o Wilson com tom de pouco caso, enquanto nos divertíamos com a sua irritação.

- Haha, já vou descer - disse o Tieta, desaparecendo da janela.

Instantes depois, já seguíamos rumo à casa do Nique, onde encontraríamos o resto da turma. Caminhávamos pela pista, desconsiderando a existência da calçada.

- E a Gator’s sai ou não sai? - perguntei aos rapazes, referindo-me a um assunto bastante em pauta naquele início de ano. Como já acontecia entre rockabillies de outras regiões da cidade, queríamos criar uma identidade própria para a nossa turma. O nome para o grupo estava definido: Gator’s. Além de homenagear Bill Halley, um dos pais do rock’n’roll, responsável por celebrizar a canção “See you later alligator”, a designação seguia a tendência de escolher animais como símbolo para as turmas. Pelas ruas de São Paulo já circulava o pessoal da The Ratz e na vizinha Taboão da Serra existia a Fox Billy.

- Vai sair sim, só temos que reunir a turma toda e acertar os detalhes - respondeu o Tieta, deixando o ar bonachão e assumindo uma postura mais grave.

- O que tá difícil é sair essa reunião. A gente tem que agitar isso logo - ressaltou o Wilson.

- Mas o que tá faltando? - indaguei novamente.

O Wilson estacou por um momento. Seu rosto magro assumiu uma expressão pensativa antes que ele virasse a cabeça em minha direção e começasse a falar: - Temos que escolher o desenho para o estandarte da turma e mandar fazer a tela para pintar as camisetas. O Fernandinho trouxe um desenho legal, tem que ver se o pessoal aprova.

- É, se todo mundo estiver por aí, podemos até conversar hoje mesmo - sugeriu o Tieta.

Balancei a cabeça concordando, enquanto retomávamos a caminhada. As ruas do bairro, predominantemente residencial, estavam tranquilas. Luzes azuladas avançavam sem força pelas janelas de muitas casas, onde pessoas refasteladas em sofás acompanhavam a chocha programação televisiva das noites de sábado. Vez ou outra, um carro passava por nós, clareando com seus faróis as vias mal iluminadas.

sábado, 12 de junho de 2010

Noite de balada (Cap. 15/Parte 1)

- See you later, alligator!!! Tchu, tchu, tchutchu...

Minha voz desafinada ecoava pelo banheiro acompanhando a música de Bill Halley, enquanto ensaboava o corpo distraidamente dentro do boxe. Banhado pela água quente, meu tronco balançava de um lado para o outro, seguindo o ritmo do pioneiro do rock’n’roll. A diversão só acabou com algumas batidas fortes na porta do banheiro.

- Que foooi? - perguntei, sem ouvir a resposta, encoberta pelo alto volume da música e pelo barulho do chuveiro. Levei, então, minha mão direita até a torneira, fechando-a. Em seguida, abri o boxe e levei os dedos enrugados pela ação da água ao botão que regulava a altura do som, deixando que algumas gotas escorressem sobre o rádio.

- Oiii? Que foi?

- Você virou sócio da Sabesp? Isso é um banho ou uma danceteria? - questionou minha mãe, nervosa com o meu prolongado banho.

- Tá, tá, já vou sair. Só vou me enxaguar direito - respondi, ao mesmo tempo em que fechava a porta do boxe.

Abri novamente a torneira e deixei que a água caísse sobre o meu corpo, retirando o sabão que o cobria. Dessa vez, entretanto, tratei de ser rápido, pois sabia que minha mãe estava com a razão, meu banho já havia durado tempo demais.

Enxuguei o corpo ainda dentro do boxe, depois pulei para o tapetinho esticado no chão do banheiro. Vesti rapidamente a camiseta e a calça jeans que deixara sobre o banquinho de plástico. Depois, abri a gaveta ao lado da pia e retirei o secador, o pote de gel e a escova de cabelo para dar início ao ritual do topete.

A noite prometia ser agitada, apesar de não haver nenhuma balada rockabilly marcada para aquele sábado. Sempre bem informados, Tieta, Nique e Wilsão tinham descolado duas festas na região para a turma aparecer. Duas festas que, como era costume, trataríamos de tornar rockabillies.

Assim que terminei de ajeitar o topete, fui para o quarto. Diante do espelho, coloquei a camiseta branca para dentro da calça. Ensaiando alguns passos de dança, segui até o armário, onde peguei a bota preta que iria estrear naquela noite. A jaqueta de couro, no entanto, ficou pendurada no cabide, sendo substituída naquele dia por um casaco negro de veludo. Fazia pouco tempo que havia descoberto a aptidão roqueira daquele agasalho, herdado de um primo. A gola levantada e os botões da manga fechados conferiam ao casaco um ar bem ‘rocker’. Até passei a achá-lo muito parecido com o que James Dean usou em Juventude Transviada. “Dia desses ainda pinto esse casaco de vermelho, vai ficar igualzinho ao do Jimmy”, matutei enquanto levantava o zíper, tomando o cuidado de deixá-lo na altura do umbigo para garantir um ar mais rockabilly.

Antes de sair, separei alguns discos para levar. Jerry Lee Lewis, Bill Halley, Carl Perkins, Elvis Presley e Litle Richard eram alguns dos cantores representados nos LPs que empilhei sobre a cama. Peguei ainda as trilhas musicais dos filmes La Bamba e American Grafitti. Álbum duplo, repleto de canções roqueiras, esse último estava entre os meus favoritos. Todos eles traziam na capa o meu nome escrito à caneta. A medida era necessária para evitar que os discos se misturassem, durante as festas, aos dos demais integrantes da turma.

segunda-feira, 17 de maio de 2010

O grande show (Cap. 14/Parte 2)


Conforme a noite se aproximava, o movimento crescia nas imediações do Projeto SP, trazendo consigo um inconfundível clima de euforia. Rockers de todas as idades e das mais diversas regiões iam, aos poucos, lotando a frente da casa de espetáculos. Nossos amigos da Fox Billy, também frequentadores da Cave, já estavam lá quando o pessoal da The Ratz apareceu. Considerada a mais antiga turma de roqueiros paulistanos, essa segunda turma era a mais conceituada da cidade. Também por ali estava o Érique Von Zíper, presidente do Rock’n’Roll Club do Brasil, o Eddy Teddy, da famosa banda Cokeluxe, e as meninas da Betty Boop - única turma feminina de Sampa - trajadas como se realmente estivessem “nos tempos da brilhantina”. O prestígio do trio nova-iorquino, no entanto, podia ser realmente medido pelos roqueiros de longa data que aguardavam o início da apresentação zanzando pelas imediações.

- Aquele ali não é Marcelo Nova, vocalista do Camisa de Vênus? - perguntei para o Morcegão, apontando para um sujeito que passava perto de nós, aparentando ser o antigo parceiro do Raul Seixas.

- Porra, acho que é, sim - respondeu o Morcegão, analisando o roqueiro. - Aliás, acho que também já vi o Kid Vinil e o Tony Campello andando por aí.

A expectativa era grande quando as portas foram abertas. Eufórica e ansiosa, a turma se espalhou pela platéia, repleta de conhecidos da comunidade rockabilly. Acompanhado por alguns amigos, garanti um lugar perto do canto direito do palco e aproveitei para dançar ao som de antigos sucessos do rock’n’roll que animavam o público enquanto o show não começava. Pouco tempo depois, quando a música parou para a entrada do roqueiro que faria o show de abertura, assobios, vaias e xingamentos tomaram conta do Projeto SP. Afinal, o músico de cabeleira descolorida e arrepiada, espécie de versão brasileira do Billy Idol, não tocava exatamente o som que esperávamos naquela noite.

- Cai foraaa!!! - bradou um indignado Nique.

- Vai pra casa - prosseguiu o Wilson fazendo um copo amassado voar até o palco. O clima pouco amigável, contudo, não desanimou o cara. Sob uma chuva de copos de plástico, alguns ainda com cerveja, o músico fez sua apresentação, dando à platéia rockabilly um divertido momento de catarse naquela noite em que a única coisa que importava era o Stray Cats.

A tranquilidade voltou a reinar no palco, e também na platéia, assim que o controverso cantor encerrou sua apresentação. O silêncio, entretanto, trouxe consigo a ansiedade pelo show da banda norte-americana. Àquela altura todos queriam ver rock’n’roll de verdade. Assobios e muita gritaria, dessa vez de aprovação, ecoaram pelo recinto quando as luzes voltaram a se acender, sinalizando a hora da tão aguardada atração da noite.

Urros de entusiasmo recepcionaram os topetudos nova-iorquinos, que, após um rápido cumprimento, seguiram para seus lugares no palco. Slim Jim Phantom ficou à esquerda com sua bateria de duas caixas e três pratos. Brian Setzer ocupou a posição central, enquanto Lee Rocker se posicionou à direita, bem perto do local onde eu estava. A primeira coisa que chamou minha atenção foi o visual dos caras. Eles usavam calças jeans surradas, topetes e costeletas, mas, ao contrário da maior parte da nossa turma, tinham muitas tatuagens e usavam roupas mais coloridas. Nós éramos mais ortodoxos. O branco na camiseta era quase obrigatório, assim como a jaqueta de couro preta. Além disso, somente o Nique ostentava uma tatuagem no braço, justamente aquela que possibilitara uma rápida conversa com o vocalista do Stray Cats na noite anterior.

Minha análise, entretanto, foi logo interrompida pelos primeiros acordes de rock’n’roll. A energia da sequência inicial, que incluía músicas como Rumble, Let’s Go Faster e Too Hip-Gotta Go, era tanta que não havia como ficar parado e muito menos como continuar devaneando. Mantendo um ritmo frenético, em que aproveitavam todas as possibilidades de seus instrumentos, os três logo conquistaram os quase quatro mil roqueiros que se acotovelavam na plateia. Na sequência, a clássica Stray Cat Strut antecedeu a incrível cover de Summertime Blues, de Eddie Cochran, que arrepiou todos os topetes que se espalhavam pelo recinto, incendiando o público. Extasiada, a platéia vibrava e dançava sem parar. Onde estava, podia acompanhar mais de perto o desempenho de Lee Rocker. O cara parecia ensandecido com seu contrabaixo. Ora girava, ora inclinava o enorme instrumento, chegando até a carregá-lo de um lado para o outro do palco. Enquanto isso, Brian Setzer arriscava-se com sucesso no banjo para tocar Foggy Montain.

De repente, o vocalista incorporou Gene Vincent, e começou a cantarolar uma das canções mais esperadas da noite: “Be-bop a- lu-la, she´s my baby. Be-bop a-lu-la, I don’t me maybe. Be-bop a-lu-la, she is my baby doll, my baby doll...”. Em uma espécie de transe coletivo, todos cantavam em uníssono com Brian Setzer. Inicialmente calmo, o ritmo da música subiu aos poucos, conduzindo a platéia ao nirvana roqueiro que encerrou o espetáculo.

- Isto é rock’n’roll. Deus os abençoe. - Sentenciou um Brian Setzer em estado de comunhão com o público assim que os instrumentos se silenciaram.

Era verdade. Ninguém ali tinha a menor dúvida. Após a saída dos músicos do palco, um revelador silêncio tomou conta da platéia, encantada com o que acabara de ver e ouvir.

- Que show!!! Que puta show!!! - murmurava para si mesmo o Duque, com os olhos vidrados ainda fixos no palco à sua frente, enquanto procurava se recobrar após aquela noite inesquecível.

domingo, 25 de abril de 2010

O grande show (Cap. 14/Parte 1)


O sol ainda brilhava forte quando o ônibus chegou ao ponto no final da avenida Pacaembu, pouco antes do viaduto de mesmo nome. Só para variar, desci tranquilamente pela porta dianteira. No entanto, assim que pisei na calçada e olhei para o lado, vi que a encrenca havia começado. Não havia dado tempo para que todos os malandros da turma, ávidos por fugir do pagamento da passagem, descessem pela porta traseira. O cobrador, auxiliado por alguns passageiros, havia agarrado o Tieta antes que ele escapulisse. Solidária ao amigo, a turma correu para o foco da confusão. Palavrões, empurrões, discussão, até que o Tieta conseguiu se desvencilhar do cobrador. Louco de raiva, o cara nos xingava pela janela enquanto o ônibus subia o viaduto.
- Filho da puuutaaaa!!! - Respondeu o Tieta, com o dedo médio em riste, da calçada pela qual andávamos rumo à rua Barra Funda. Enquanto isso, o Demente se divertia com a situação: - Caralho, hoje o dia promete, hoje o dia promete, o rolê já começou com treta!!! - Falou o garoto, dando uma risada debochada e esfregando a palma de uma mão contra a outra. O Tieta, entretanto, ainda não conseguia achar nada engraçado.
- Porra, que sujeito filho da puta, me agarrou pelo pescoço quando eu ia descendo do ‘busão’. Amassou toda gola da minha jaqueta e ainda estragou minha camiseta, se eu pego esse escroto quebro a cara dele - resmungava o Tieta, enquanto tentava ajeitar a gola desarrumada. A irritação do jovem roqueiro, aliás, era bastante compreensível, afinal aquele não era um fim de tarde qualquer. Estávamos a caminho do mais aguardado show de rock daquela temporada, daquele ano e, talvez, até de toda aquela década. O universo rockabilly paulistano estava simplesmente em polvorosa.
Formado por três roqueiros nova-iorquinos, o grupo que veríamos em algumas horas, o Stray Cats, era considerado o principal expoente do rockabilly contemporâneo. Dono de um enorme topete louro, o cantor e guitarrista Brian Setzer era a principal figura da banda, composta também por Slim Jim Phanton, responsável pela básica bateria equipada com apenas duas caixas e três pratos, e Lee Rocker, cuja tarefa era tocar um enorme contrabaixo acústico que parecia saído de um museu. O trio produzia um som cheio de energia e fortemente ligado aos primórdios do rock’n’roll, motivo pelo qual conseguia dividir o espaço nas nossas vitrolas com pioneiros do gênero, como Eddie Cochran e Jerry Lee Lewis.
O quarto e mais recente disco do grupo, Blast Off, era o nosso preferido, tocando em todas as festas e danceterias que frequentávamos. Os três LPs anteriores - Stray Cats, Gonna Ball e Rant N’ Rave -, mais difíceis de serem encontrados, também eram cultuados pela turma, garantindo um expressivo status a quem os possuía. O grupo, entretanto, era bem pouco conhecido fora do circuito rockabilly. Na escola onde eu estudava praticamente ninguém conhecia o som da banda americana, que também estava quase ausente da programação das rádios roqueiras, infestada naqueles dias por bandas como Guns’n Roses e Oingo Boingo. E até mesmo em sua terra natal, os Estados Unidos, berço do rock’n’roll, o trio encontrara pouco espaço para o som que produzia, sendo obrigado a trocar Nova Iorque pela inglesa Londres, onde foram acolhidos por um público bem mais receptivo. Ficara sabendo desse último fato três dias antes, quando li uma matéria, surpreendentemente publicada na capa do caderno cultural da Folha de São Paulo, noticiando a chegada do Stray Cats à cidade. Escrita por um jornalista chamado Jean-Yves de Neufeville, a reportagem de página inteira trazia também uma entrevista com Slim Jim Phantom. Uma das perguntas, aliás, era muito legal e tinha uma resposta melhor ainda. Questionado sobre quais qualidades do rockabilly o grupo procurava recriar, o batera não titubeava, apontando a excitação do som, conseguida com poucos meios e instrumentos, como a mais importante. A segunda virtude indicada por Slim era o sentimento de rebeldia que o estilo consegue manter vivo, tanto na música como no visual, nas roupas, nos cortes de cabelo e no estilo de vida. Em poucas palavras o cara resumia tudo que sentíamos naquele sábado de março, caminhando alegremente pelas decadentes ruas da Barra Funda.
Naquele momento, o Nique era o mais animado da turma, narrando com grande excitação os acontecimentos da noite anterior. Motivos para isso, aliás, não faltavam. O garoto exibia orgulhosamente a tatuagem no braço direito com o símbolo do Stray Cats - um gato com topete e costeleta -, que lhe proporcionara uma conversa com ninguém mais, ninguém menos do que o próprio Brian Setzer.
- Porra, o cara é muito gente fina. A gente estava dançando perto dele, quando eu peguei e levantei a manga da camiseta mostrando a “tatoo”. Daí o cara deu um tapinha nas minhas costas, fez um sinal de positivo e falou “Yeah, man. Yeah, man”. Foi muito loucooo!
A narrativa impressionou toda turma e foi logo confirmada pelos outros rapazes que participaram da festa no Clube C: Tieta, Wilson, Denis Demente e BB. “Puts, como fui perder essa balada! Tá certo que os caras só me avisaram às dez da noite, mas eu podia ter dado um jeito de ir”, lamentava interiormente, inconformado com o fato de ter perdido a histórica festa que ocorrera logo após o primeiro espetáculo do Stray Cats na Terra da Garoa, reunindo a nata dos roqueiros da cidade.
- Vocês precisavam ter visto, os caras não têm frescura nenhuma. Ficaram dançando rock’n’roll com a galera até altas horas - comentou o Wilson, também eufórico com o encontro da noite anterior, que proporcionara um status adicional aos cinco roqueiros da turma que o prestigiaram.
- Verdade, meu, os caras não são estrelinhas intocáveis como aquela turma do heavy metal. São bacanas mesmo, pena que vocês preferiram ficar em casa assistindo ao Globo Repórter - desdenhou o Demente, com o tradicional sorriso de escárnio estampado no rosto.
A caminhada foi breve. Logo chegamos à porta do Projeto SP, ainda completamente deserta. A chegada prematura fora planejada com bastante antecedência para evitar um possível encontro com os carecas de subúrbio. Desde o anúncio oficial da turnê da banda pelo Brasil, dois meses antes, circulava o boato de que os integrantes da mais temida tribo urbana de São Paulo atacariam qualquer forma de vida usando topete e trajando jaqueta de couro que ousasse circular pela cidade nos dias de show. A fama dos carecas era tão terrível que mesmo nós, nada bobos quando o assunto era confusão, sentíamos um grande temor de encontrá-los nas ruas da cidade. Nomes como Carlai, Paraná e Paulo Careca, alguns dos representantes dessa turma de nacionalistas radicais que circulavam pela Zona Oeste, inspiravam pavor entre punks, headbangers, góticos e, claro, rockabillies.
A grande ironia estava no fato do Paulo Careca ser o irmão mais velho de um dos integrantes da nossa turma de roqueiros, o Daniel, que também nos acompanhava naquela tarde. O sujeito moreno, cuja altura não ultrapassava um metro e setenta, mas cujos músculos super desenvolvidos mal cabiam dentro da roupa, era famoso pela extrema violência. Comentava-se no bairro que ele fora jurado de morte na Febem Tatuapé, onde estivera internado após algumas confusões. Também falava-se que já havia espancado diversos professores de artes marciais. Não era possível distinguir ficção e realidade, no entanto, sabíamos que era bom manter distância, principalmente porque ele já avisara que nem o próprio irmão seria poupado das porradas no caso de um possível encontro no dia do show.
Felizmente, até aquele momento nosso plano havia dado certo. Faltavam poucos minutos para as sete horas da noite, mas o anoitecer ainda estava distante, devido ao horário de verão que alongava o dia naquela época do ano. De qualquer maneira, ainda faltava um bom tempo para a abertura dos portões da casa de espetáculo. Assim, enquanto uma parte da turma seguiu até um boteco próximo para tomar uma cerveja gelada, o restante do grupo se acomodou no meio-fio, jogando conversa fora para passar o tempo.
- Galera, quem vai abrir o show? - perguntou o Fabrício.
- O Supla. Consegue acreditar nisso? - respondeu um Júnior Neguinho desconsolado com a decisão dos organizadores.
- Puts, que ideia!!! Onde já se viu colocar um cara desses para abrir um show rockabilly. Não tem nada a ver! - acrescentou o Fabrício, demonstrando o mesmo sentimento de indignação que tomava conta de toda galera.

quarta-feira, 7 de abril de 2010

Um agitado passeio (Cap.13/Parte 2)

Olhares curiosos eram dirigidos a nós enquanto percorríamos a avenida. Algumas pessoas pareciam se divertir vendo nosso traje defasado por mais de três décadas de evolução na moda. Outros nos miravam com raiva, ódio mesmo, incomodados com nosso visual destoante. Havia ainda as senhoras assustadas que desviavam os olhos de nossa direção e preferiam atravessar as oito faixas da avenida a ter que cruzar conosco na mesma calçada, imaginando uma hostilidade inexistente. Confesso que me divertia com aquelas reações. Enquanto caminhava, ia pensando nos comentários que essas pessoas fariam entre seus familiares e amigos. Uns diriam que o mundo estava perdido. Outros ressaltariam nossa cafonice e haveria até aqueles que elogiariam. Não muitos, é verdade.

Mais três quarteirões andados e avistei a fachada do shopping. A construção alta, imponente, tinha à sua frente uma calçada espaçosa, onde vários topetudos conversavam ao lado de uma grande banca de jornal. Algumas meninas também estavam entre eles. Meus olhos pararam sobre uma das mais charmosas. Parecia saída de uma cena do filme American Grafitti. Parte de seu cabelo negro e liso escorria em uma simpática franja, enquanto o restante estava preso em um rabo de cavalo. Trajava uma malha vermelha de botões, camisa branca e uma saia longa de tom escuro que se estendia até pouco abaixo do joelho, permitindo a visão de uma meia soquete branca e um sapatinho preto.

- Falaaa, Batman! - gritou o Tieta para um garoto moreno, baixo e encorpado, ostentando um discreto topete e trajado com uma jaqueta de couro, onde se via uma estampa, branca e retangular, com o desenho de uma raposa roqueira e a inscrição Fox Billy.

- E aí Tieta, como é que tá?

- Bem, bem. Quais são as novidades?

- Pô, os seguranças encanaram com a gente. Não querem saber de rockabilly lá dentro.

- Porra, que sacanagem!

- Mas a gente se divide e vai entrando aos poucos, pelas portas laterais. Os caras não vão reparar

- disse nosso novo amigo roqueiro, enquanto nos cumprimentava com bastante animação. - E depois a gente se encontra lá dentro.

Concordamos com a ideia, mas antes cumprimentamos o resto do pessoal. Não conhecia muitos dos rockers que estavam por ali, a maior parte deles integrante da Fox Billy. Como não havia pressa, ficamos batendo papo por mais algum tempo, buscando nos inteirar das novidades do universo rockabilly. O papo girava em torno de música, discos raros e festas, agendadas para as próximas semanas em locais ainda desconhecidos para mim.

Acompanhado pelo Wilson e pelo Morcegão, atravessei o estacionamento térreo do shopping e entrei pela porta lateral, localizada à direita do prédio. O som do salto das botas batendo no piso encerado do centro comercial denunciava nossa presença. Postado a poucos metros da entrada, o segurança engravatado não nos barrou, mas levou o rádio à altura da boca, pronunciando algumas palavras fora do alcance de nossa audição. Felizes com o êxito da empreitada, passeamos por todo o pavimento, sem nos ater às vitrines. Subimos, então, uma escada secundária, evitando passar pelos locais mais movimentados. Demos uma volta sem pressa, observando as meninas bonitas que desfilavam pelos corredores do elegante shopping. Muitas delas simplesmente nos ignoravam, outras olhavam com asco, sentindo-se ofendidas com a nossa presença naquele tradicional ponto de encontro dos paulistanos abonados. Passando ao meu lado, uma senhora ressaltou em voz alta a queda na frequência do shopping. Ao invés de indignação com o preconceito, senti um certo orgulho. Era gostoso causar repulsa àquele tipo de gente de horizonte tão estreito.

Quatro times de futebol de botão, organizados em caixas de papelão azul, despertaram nossa atenção quando passávamos em frente a uma loja de artigos esportivos. Eu e o Wilson alimentávamos uma antiga rivalidade nesse esporte. Não gosto de confessar que, apesar de jogar bem, eu era o grande freguês nessa história, amargara inúmeras derrotas e tivera apenas uma vitória.

- A minha seleção brasileira é muito melhor que esses times aí - ressaltei em tom de desafio logo que paramos em frente à vitrine, fazendo referência aos meus dez jogadores de acrílico azul e branco, que elegera como selecionado nacional.

- Se liga, você é um baita dum freguês, só toma chocolate.

- Quem levou um couro outro dia? Fui eu?

- Você só ganhou porque ajeitou a bola com a mão - lembrou o Wilson, destacando uma passagem negra no meu currículo esportivo. Meses antes, jogávamos em minha casa. O placar era zero a zero, quando aproveitei uma distração do Wilson para ajeitar a bolinha de feltro. Rapidamente, coloquei-a numa posição melhor para o chute do meu jogador. Quando a atenção do meu adversário voltou ao jogo, avisei-lhe que ia chutar a gol. Ele arrumou zelosamente o goleiro pesado, recheado de areia, mas minha conclusão foi perfeita. A bola entrou com força no ângulo direito. Golaço! O jogo prosseguiu sem nenhuma contestação. Poucos minutos antes do término, fiz o segundo gol e comemorei como se estivesse vencendo um confronto Brasil e Argentina. Jogo encerrado, aproveitei para tirar um sarro do meu adversário enquanto guardávamos os botões. Calmo, ele olhou para minha cara e falou: “Bem, usando a mão qualquer um vence”. Eu estava desmascarado, minha armação fora flagrada e minha vitória ficara desmoralizada.

- É, tá certo, foi sacanagem minha, mas depois eu fiz outro gol.

- Se liga, você é um baita freguês - sentenciou o Wilson entre risadas do Morcegão, que se divertia com a polêmica.

Depois de alguns minutos rodando pelo segundo andar, decidimos subir mais um lance de escada e penetrar em território inimigo. O terceiro piso, repleto de lojas de grife, era o local preferido dos poperôs. Risos de deboche se misturaram a olhares provocativos quando passamos pelas mesas das lanchonetes localizadas no centro do pavimento, onde nossos rivais jogavam conversa fora. Muitas caras familiares, conhecidas da House, estavam entre eles. Havia também algumas meninas bonitas que eu costumava paquerar em nosso antigo ponto de encontro. Agora, no entanto, era improvável qualquer aproximação.

O terceiro piso possuía uma bela vista da entrada do shopping. Debruçado sobre o parapeito, observei os altos portais em forma de arco, as rampas paralelas que levavam ao primeiro e ao segundo pavimentos e o relógio de água. Antiga atração do local, esse relógio era composto por uma estrutura tubular de vidro, alta e fina, com trechos um pouco mais largos que representavam cada hora do dia. Naquele momento, o líquido verde no seu interior enchia o pedaço que indicava as cinco da tarde.

- Olha o pessoal. Devem estar se reunindo no andar de baixo - falou o Morcegão com o indicador apontando na direção de um grupo de rockers que subia a rampa rumo ao segundo piso.

- Vamos até lá galera - acrescentou o Wilson.

Sem dar bola aos playboys, pegamos a escada rolante. Enquanto descia, uma colega de colégio passou por mim no sentido contrário. Pele alva, olhos castanhos, cabelos castanhos claros, nariz levemente empinado e um corpo bonito formavam um conjunto atraente. Ela estudava uma série à frente da minha, não tínhamos contato, mas cumprimentei-a com um aceno, sabendo que a repercussão do passeio já estava garantida durante a semana. Andamos até o local onde acreditávamos que estivesse o resto do pessoal. Logo avistamos o grupo de quase trinta topetudos, conversando ao redor de alguns bancos no centro do corredor que levava a uma das rampas de acesso, bem em frente a uma loja de departamentos. Todos haviam seguido a mesma técnica, passando por entradas secundárias em trios ou quartetos. Naquele momento, conversavam numa boa. Mas o comportamento tranquilo não impediu que alguns minutos depois o grupo fosse cercado por uma dúzia de seguranças. Vestindo ternos pretos, os grandalhões vieram sugerir que nos retirássemos.

- Por quê? Não estamos fazendo nada - argumentou o Batman, indignado.

- A direção quer que vocês saiam. Estão incomodando os outros clientes - afirmou o chefe da segurança em tom grave.

- Mas a gente só está conversando - disse o Tieta, tentando intervir na conversa.

- Não posso fazer nada. As ordens são para pedir que vocês se retirem do shopping. Agora, se vocês quiserem encrencar vamos ter que chamar mais seguranças ou pedir para a polícia vir até aqui. Vocês que sabem.

- Vamos embora pessoal. Não vale a pena ficar aqui com esses caras - falou em tom de desprezo o Nique, acatando o pedido, mas deixando claro seu descontentamento.

Também fui tomado pela indignação do grupo. “Por que esses caras querem nos expulsar? Ninguém fez nada de errado”, me indagava, enquanto o pessoal saía escoltado pelos seguranças, sob o olhar curioso dos clientes do centro comercial. Resolvi, então, me separar. “Ah, filho da puta nenhum vai me expulsar de lugar nenhum. Não vai mesmooo”, resmungava interiormente.

Cara fechada, passos rápidos, tomei a direção contrária sem ser observado pelos seguranças, atentos ao centro da discussão. Logo já estava fora do alcance da visão dos engravatados cumpridores de ordem. Elevei o queixo, ajeitei a gola do casaco de couro, colocando-a de pé, e caminhei por todo aquele andar antes de subir a escada para o terceiro piso, onde alguns ‘poperôs’ se divertiam vendo a expulsão dos rockabillies. Passei batido pelos babacas, sem rumo certo. Pedi um refrigerante numa lanchonete. O copo veio cheio, quase transbordando. Tomei o refresco gelado sem pressa, corroído pelos acontecimentos recentes. Quando o último gole escorreu pela minha garganta, decidi que era hora de ir embora. Sempre altivo, desci a escada rolante, andei mais um trecho de corredor e percorri a movimentada rampa. Antes de sair, lancei um olhar de desprezo para os grandalhões postados na porta, enquanto minha cabeça sentenciava: “Pobres coitados!”

quinta-feira, 25 de março de 2010

Um agitado passeio (Cap. 13/Parte 1)

Desliguei o telefone perplexo. O Wilson contara tantas novidades que eu custava a acreditar. Tinha passado apenas um mês fora de São Paulo, aproveitando as férias escolares em São Carlos, terra dos meus avós maternos. As mudanças, no entanto, eram tamanhas que faziam minha ausência parecer muito maior. A notícia mais surpreendente era sobre a House. Os rockabillies tinham sido, simplesmente, expulsos da casa pelos outros frequentadores.

- Como é que é? Você tá brincando? - exclamara incrédulo após receber a notícia do Wilson.

- É sério, os caras aproveitaram um dia em que estávamos em poucas pessoas para reunir um grupo grande e vir pra cima. Não teve jeito, era muita gente. Tivemos que cair fora.



- Poperôs filhos da puta! Que sacanagem! Por que os caras fizeram isso?



- Acho que eles estavam incomodados com a gente na área deles. Mas vai ter troco. Eles podem esperar.



A novidade me deixou chateado. Como meus amigos, eu gostava da House, especialmente das meninas que a frequentavam. Esse, aliás, talvez fosse um dos motivos que despertara a ira dos locais. Dirigindo os carros mais cobiçados da época, usando tênis e roupas de grife, eles não podiam admitir um grupo de roqueiros mal arrumados chamando atenção no pedaço deles. É verdade que o desprezo era recíproco, pois não havia como levar a sério pessoas que escutavam “Pup of the jam”.



Segundo o Wilson, a Cave tinha voltado a receber os rockers em suas domingueiras, assim como às sextas, quando uma das pistas da casa era reservada para os admiradores de rockabilly. Além da nossa turma, composta por jovens da região do Jardim Bonfigliolli, a casa noturna recebia agora muitos roqueiros de Taboão da Serra, que formavam a Fox Billy. Outro local que entrara no circuito era o Shopping Iguatemi, onde topetudos de diversos lugares de Sampa se reuniam nas tardes de sábado.



- Vamos lá hoje à tarde? O Nique, o Morcegão, o Júnior Neguinho e o Tieta também vão - convidou o Wilson.



- Mas ali só dá playboy! Os poperôs da House não vão estar por lá? O shopping tá bem na área deles.



- Alguns, mas não tem problema, vai ter bastante rockabilly nesse horário. Deixa de história, Claudinho.

***

Faltavam poucos minutos para as quatro da tarde quando cheguei à casa do Tieta. Topete ajeitado, calça jeans surrada, camiseta branca com as mangas viradas, botas pretas e um cinto com a tradicional fivela dourada me ajudavam a compor o visual. Devido ao calor, típico de fevereiro, levava a jaqueta de couro apoiada no ombro e segura por apenas dois dedos de minha mão direita. O Wilson chegou logo depois, no mesmo instante em que o Nique, o Júnior e o Morcegão despontaram no fim da rua, andando sem pressa nenhuma.


- Hiii, chegaram os maus elementos da Vila Gomes! - provocou o Tieta.
- Vamo lá, cambada! Vamo dar um rolê - gritou o Nique assim que se aproximou de nós, com jeito brincalhão e a mão direita já esticada para nos cumprimentar.
Saímos caminhando em direção à Praça Elis Regina. Ficava ali o ponto inicial da linha Vila Gomes - Jardim Miriam, nosso meio de transporte para o passeio vespertino daquele sábado. Demos sorte, pois havia um ônibus parado, esperando o horário para iniciar o próximo percurso. A porta traseira já estava aberta. O cobrador também ocupava seu posto, aguardando os primeiros passageiros enquanto o motorista acertava os últimos detalhes na cabine da empresa ao lado do ponto.


Entramos no ônibus fazendo a algazarra tradicional. Tieta e Wilson trocavam cômicas gozações, provocando o riso dos demais. O Nique, no entanto, ficou sério assim que viu um sujeito invocado sentado no último banco. Estatura mediana, ombros largos, braços fortes, cabelos castanhos suavemente revoltos, o moço lançava um olhar de desafio em nossa direção. Em seu rosto moreno, que permitia adivinhar uma idade por volta dos 30 anos, delineava-se um sorriso discreto e irônico. A palavra confusão parecia estampada naquela figura pouco amistosa.


- Júnior, me empresta um trocado para inteirar a passagem! Vamos sentar lá na frente pessoal.
Todos entenderam a mensagem do Nique. Um a um passamos pela catraca e nos espalhamos pelos bancos dianteiros, abandonando o costume de tentar descer, sem pagar, pela porta traseira.


- Conheço esse cara, é um gambé folgado pra caramba. Tá sempre louco pra arranjar encrenca - cochichou o Nique no meu ouvido.


Seguimos viagem sem bagunça, apenas batendo papo. Aproveitei para contar os detalhes de minha estada no interior. Afinal, aquela temporada de férias tinha sido muito legal. Um dos meus primos são-carlenses, o João Guilherme, me apresentara a uma série de pessoas. Muitas delas acabaram virando amigos. Passávamos as tardes no clube e à noite saíamos para passear. Nos finais de semana, munido de uma fita cassete repleta de sucessos do rock’n’roll, passava sempre por alguma festa. Cara de pau, pedia para que a tocassem e tirava alguma menina para dançar. Em pouco tempo, já era conhecido por boa parte dos jovens da cidade e até atraía o interesse de algumas garotas por meu tipo incomum. Isso, no entanto, não significava que tinha conseguido grandes feitos com o sexo frágil, pois a timidez ainda era um grande empecilho.


Deixei de contar para a turma uma outra experiência muito bacana. Tinha participado da redação de um livro com meu avô e meus primos, mas julguei que esse não seria um assunto muito interessante para o pessoal. Vovô escrevera o primeiro capítulo de uma história de suspense. Depois, o João Guilherme redigiu o segundo capítulo e eu, o terceiro. A ideia era que cada neto escrevesse um capítulo, levando o texto ao desfecho final, que ficaria sob a responsabilidade do vovô. Nós já tínhamos dado o empurrão inicial, mas o texto ainda deveria passar pelas mãos de meia dúzia de primos.


Minha narrativa foi interrompida, entretanto, por uma polêmica. O pessoal não conseguia acreditar que uma das turmas mais temidas de São Carlos, ao lado dos punks, era formada por fãs do Titãs. Eu também custara a crer naquela informação, mas o pessoal da cidade garantira sua veracidade. No calor da conversa sobre a excentricidade interiorana, esquecemos do policial invocado sentado no banco do fundo. O sujeito, no entanto, reavivou nossa memória quando o ônibus entrou na avenida Eusébio Matoso. Pagou o cobrador, passou pela catraca e permaneceu em pé, próximo de nós. Felizmente, a situação constrangedora durou apenas alguns metros, pois a parada em que desceríamos já era a seguinte. Levantamos e nos aproximamos da porta. O Morcegão puxou a cordinha que se estendia pelo teto do ônibus, informando nossa intenção de descer.


Saímos do ônibus assim que as portas se abriram no ponto localizado diante do cruzamento das avenidas Eusébio Matoso e Faria Lima. Imediatamente atrás saiu o policial, seguido ainda por outros passageiros. Sentia-me nervoso. Um calor anormal aquecia minha barriga. “O que esse cara quer com a gente?”


- Tá me empurrando por quê? Tá com pressa é? Isso é desacato à autoridade, rapaz - gritou em tom autoritário o policial.


Olhei para trás pelo canto do olho direito. Colérico, o policial enfiava a mão esquerda no bolso do camisão bege, enquanto a direita permanecia sobre a cintura, sinalizando a existência de uma arma. Suas palavras, contudo, não eram dirigidas a nenhum de nós. Um rapaz magro, ao mesmo tempo simplório e bem arrumado, olhava assustado sem entender nada. Confuso, tentou conversar:


- Ma, ma, mas eu nem toquei no senhor.


- Cala boca! Fica quieto, se não vai ser pior pra você - esbravejou o policial, sacudindo uma credencial diante do nariz do rapaz.


O barulho de nossas botas ecoava pela calçada enquanto seguíamos a passos rápidos pela Faria Lima, nos afastando da confusão. O calor no estômago se transformava numa leve sensação de embrulho. Apesar de aliviado pelo problema não ser conosco, sentia náuseas pelo gesto autoritário do policial. O coitado do rapaz, afinal, não tinha feito nada. “Que gambé sacana!”


Após o primeiro quarteirão, a tensão começou a se desfazer e o papo voltou a ficar animado. Debatíamos o restante da programação daquele sábado. O Tieta contou que fora convidado para duas festas naquela noite, uma na Vila Gomes e outra no Bonfa, como carinhosamente chamávamos o Jardim Bonfigliolli. Isso significava que o convite se estendia a todos os topetudos da região, pois havíamos nos especializado em visitar festas alheias.

terça-feira, 2 de março de 2010

Um domingo especial (Cap. 12/Parte 2)

Depois de um bom tempo zanzando pela pista de dança do piso superior, resolvemos descer no momento em que teve início uma sessão de músicas românticas. Escutar Trace Chapmam, afinal, era demais para os nossos ouvidos roqueiros. Eu liderava o pequeno grupo, seguido pelo Supondo, o Wilson e o Morcegão. Quando estávamos no meio da escadaria que levava ao térreo, meu olhar se deparou com uma linda garota vindo no sentido contrário. Louros cabelos encaracolados emolduravam o rosto claro, enfeitado por bochechas rosadas, olhos acastanhados e lábios finos e delicados, que formavam um sorriso discreto e extremamente simpático. Bem proporcionado, o corpo se movia com delicadeza e cheio de feminilidade. “Nossa, que gata!!!”, pensei, sem conseguir desgrudar os olhos da formosa menina.

Para minha surpresa, no entanto, ela e a amiga que a acompanhava pararam logo após passarem por mim para cumprimentar o Wilson e o Morcegão. Visivelmente satisfeitos com o fortuito encontro, os dois rapazes fizeram um sinal pedindo para que eu os esperasse. “Puts, nessa eu não acredito! De onde será que os caras conhecem essa gata?”, me perguntava, encantado pela beleza da menina.
Após trocarem beijinhos e baterem um rápido papo com as garotas, meus dois amigos reiniciaram a descida, enquanto eu e o Supondo os esperávamos alguns degraus abaixo, atrapalhando o trânsito.

- Pô, quem é aquela mina? Que gata!!!

- É a Carol, ela é lá do bairro, uma daquelas minas que eu te falei - explicou o Wilsão.

- Gostei, vocês têm que convidar mais minas desse naipe - brinquei, antes de voltar a descer a escada.

- Se liga, Claudinho, essa não é pro seu bico não.

- Então é pro bico de quem? Pro seu?

- Exatamente, exatamente - concluiu o Wilson em tom de gozação.

Naquele instante, o movimento já era grande no térreo. Praticamente toda turma rockabilly estava por ali. O DJ, contudo, permanecia tocando um rock mais moderno. Naquele exato instante, o som do Oingo Boingo substituía a música dos ingleses do Queen nas caixas espalhadas ao redor da pista. Mas não demorou muito para que a sessão realmente roqueira tivesse início, em grande estilo, com “Cry, cry, cry”, um dos grandes sucessos de Johnny Cash, conhecido por seu ritmo forte como um trem e cortante como uma navalha.

A música tocou primeiro meus ouvidos, a seguir penetrou em meu cérebro, desceu por minha coluna através de uma descarga de energia e se espalhou por meu corpo, ocupando espaço em todos os membros e alterando também a expressão do meu rosto. Como um Incrível Hulk de topete, sentia os acordes da música me transformarem. Já não era mais o garoto baixo, de um metro e sessenta e oito de altura, tampouco continuava a ser o dono de um magro corpo de cinquenta e cinco quilos. Sentia-me mais forte, confiante e dançava com uma energia inabalável, deixando toda timidez de lado. Ao som do bom e velho rock’n’roll, podia enfrentar qualquer temor, qualquer perigo, qualquer adversário.

A alegria transbordava da pista de dança. Dezenas de garotos e garotas se amontoavam para acompanhar o informal espetáculo apresentado por nosso grupo de roqueiros, cujos pés moviam-se sem parar, embalados pelos básicos acordes do rockabilly. Até o Supondo, que uma vez ganhara um concurso de break numa festa escolar anos antes, redescobrira o prazer de dançar e movia-se - ainda desajeitado, mas com muito entusiasmo - em um canto do salão. Durante aquela breve sessão de músicas, deixávamos de ser simples garotos do subúrbio, esmagados pela imensidão e indiferença da cidade grande, para tornar-nos especiais, capazes de dançar como mais ninguém em Sampa.

sexta-feira, 26 de fevereiro de 2010

Johnny Cash


Amigos, esse 12º capítulo do livro termina com o som de Johnny Cash agitando a pista de dança da House. Com seu ritmo forte como um trem e cortante como uma navalha, Cash continua sendo um dos meus cantores favoritos. Por isso, fui ao You Tube procurar alguns vídeos interessantes desse incrível pioneiro do rock, que em 2006 inspirou o filme Johnny & June, baseado no intempestivo relacionamento entre o astro e sua esposa, a talentosa e carismática cantora June Carter.
Nascido no Arkansas, em 1932, Cash teve como berço musical a Sun Records, a mesma gravadora que lançou astros como Elvis, Jerry Lee Lewis, Carl Perkins e Roy Orbison. Bem, a seguir estão alguns vídeos originais do cantor, incluindo uma entrevista, gravada em 1961 para um programa de TV americano, e uma apresentação ao lado de June na prisão de San Quentin, em 1969.
http://www.youtube.com/watch?v=pBa9mMyLhXQ
http://www.youtube.com/watch?v=H50wPVbL_z8&feature=related
http://www.youtube.com/watch?v=wEV58ztuihs&NR=1
http://www.youtube.com/watch?v=qvb-6gNKdZE&feature=related
Espero que gostem. Grande abraço!
Pedro

sábado, 13 de fevereiro de 2010

Um domingo especial (Cap. 12/Parte 1)

Aquele era um domingo atípico. Os cruzamentos das grandes avenidas paulistanas estavam repletos de pessoas carregando bandeiras coloridas e distribuindo panfletos para os motoristas parados nos semáforos. Faixas pendiam das janelas dos apartamentos, identificando a posição política dos seus proprietários, e pelas ruas circulava um número enorme de pessoas, excitadas com aquela data especial. Depois de quase trinta anos de eleições indiretas, boa parte deles vividos dentro de uma rígida ditadura militar, naquele dia 17 de dezembro de 1989, os brasileiros voltavam a eleger o presidente do país. Dois candidatos de história e formação bem distintas concorriam ao cargo: Lula e Collor. Migrante nordestino, Lula começara como metalúrgico, depois se tornara sindicalista e, por fim, uma das figuras mais destacadas do cenário político nacional. A primeira vez que ouvi falar dele foi em 1982, durante a eleição para o governo do estado de São Paulo. Naquela época - pouco mais de sete anos antes, quando os ventos da redemocratização começavam a soprar pelo país -, ele causara um grande temor entre as classes média e alta. Os integrantes da parcela mais abastada da sociedade imaginavam que, caso fosse o escolhido, Lula imporia severas medidas sociais. “Nossa, será que se ele ganhar vem mesmo um monte de gente estranha morar aqui em casa?”, me perguntara insistentemente na época daquela primeira eleição, influenciado pelos comentários que ouvia em meu meio social, o mesmo que naquela nova eleição se encantara com a figura de Collor, um atlético caçador de corruptos, fluente em francês.

Ainda sem idade para votar, eu e o Daniel, meu primo de Santos, olhávamos a tudo com curiosidade e de forma descompromissada, enquanto percorríamos as várias quadras da avenida Faria Lima que separavam a avenida Rebouças do bairro do Itaim. Apesar de toda agitação e da importância daquele dia, tínhamos outras preocupações além do destino da nação.

Residente em Santos, principal município do litoral paulista, o Daniel estava em São Paulo justamente por causa da eleição. Seus pais, que moravam há pouco tempo na cidade litorânea, ainda votavam na capital, por isso subiram a serra naquele dia para dar sua contribuição ao processo eleitoral brasileiro. Aproveitando a ocasião, convidei-o para conhecer a House, o novo ponto de encontro da turma rockabilly no fim das tardes de domingo. Tínhamos nos encontrado horas antes na casa da avó paterna dele, no bairro de Perdizes. Depois de almoçarmos, colocamos a conversa em dia e acompanhamos pela televisão o desfecho do sequestro de um famoso empresário, que dividia o interesse do público com a eleição naquele fim de ano. Quando o relógio já marcava cinco horas da tarde, decidimos sair para nossa empreitada dominical. Naquele instante, caminhávamos tranquilos, sob um gostoso sol de fim de primavera.

- Porra, você precisa ver a quantidade de gatas que tem na House, é bem melhor do que a Cave, aonde a gente ia antes. Além disso, tem uma pista em que rola sempre uma sessão de rock’n’roll pra nossa galera, é muito louco, já tem uns dois meses que a gente vai lá todo domingo.

- E você já sabe dançar ou fica só de canto olhando os outros?

- Opa, já tô dançando legal, mas ainda não sou tão bom quanto uns caras da turma, como o BB e o Demente, eles dançam pra caralho.

- Legal, mas como você aprendeu a dançar? Você sempre foi meio durão.

- Pô, sozinho. Eu ficava só de olho na galera dançando, marcando os passos na cabeça. Aí, um dia eu entrei no meu quarto, tranquei a porta, encostei os móveis, coloquei um disco do Bill Halley na vitrola e dancei até aprender. Acho que o disco ficou gasto de tanto que girou na vitrola.

- Haha, você é maluco mesmo.

- E depois, num outro dia, peguei minha irmã e fiquei treinando os passos em dupla com ela até ficar craque.

- Coitadinha!!!

- Que nada, ela curtiu também, ficou craque. E como ainda é bem leve, tô conseguindo até fazer umas acrobacias bacanas com ela, você precisa ver.

- Pobrezinha da Isabela, deve ser duro aguentar um irmão roqueiro - se divertia meu primo, que, aliás, se mostrava cada vez mais interessado no universo rockabilly do qual eu tanto falava.

A House ocupava uma construção de esquina com três pavimentos. O telhado em estilo europeu e a fachada enfeitada por duendes coloridos, que contrastavam com as paredes beges, davam à casa um ar conservador, bem distinto daquele que predominava nas demais danceterias paulistanas. Sempre bem iluminado, o térreo era o andar preferido pela turma rockabilly. Ali havia um agradável bar, rodeado por mesas e cadeiras de madeira, e uma aconchegante pista de dança. No primeiro piso havia um restaurante, normalmente fechado aos domingos, quando a casa recebia apenas a garotada. Já o segundo e último andar parecia de fato uma danceteria. Cercada por espelhos, a pista fervia ao som dos últimos sucessos, principalmente poperô.
Localizada num bairro elegante, a casa atraía uma clientela mais abonada que a Cave. Apenas nossa turma de roqueiros contrastava com o ambiente, frequentado pela rapazeada endinheirada do Itaim Bibi, que, até então, ainda nos tolerava naquele valorizado pedaço de terra da capital paulista.

Diante da porta giratória, separada da calçada por dois largos degraus, uma pequena multidão se concentrava naquele fim de tarde. Como aquela seria a última domingueira do ano, já que a casa estaria fechada nas semanas seguintes para as festas de Natal e Reveillon, ninguém queria ficar de fora. Ainda assim, eu e o Daniel conseguimos entrar com certa facilidade. Como meus amigos ainda não haviam chegado, nos sentamos em volta de uma das mesinhas do térreo para aguardá-los. Nossa conversa abordava o mesmo tema de minutos antes, quando caminhávamos pelas ruas da região.

- Rockabilly não é só música ou dança, é um estilo de vida que te acompanha vinte e quatro horas por dia - falava em tom professoral, quando uma confusão chamou nossa atenção. Do lado de fora da danceteria, um segurança discutia com alguns garotos. Nós observávamos a tudo pela janela de vidro esfumaçado localizada bem ao lado de nossa mesa. O bafafá, entretanto, terminou rápido, com uma bela rasteira do leão-de-chácara em um dos rapazes, que caiu sentado sobre o asfalto duro da rua. O golpe desmoralizou os garotos, convencendo-os a deixar a encrenca de lado.

- Caramba, o cara é bom, hein? - comentei, impressionado com a habilidade do segurança.

- É mesmo! Lá em Santos tenho um amigo assim, fera em artes marciais, o Japonês, você precisa conhecê-lo um dia desses - disse o Daniel. - Ele consegue encarar até três caras de uma vez.

- Bem, isso o BB e o Tieta também fazem, e olha que eles não praticam arte marcial nenhuma, são bons de briga mesmo.

- Como o Bahia, um outro amigo meu, que nasceu em Salvador, mas foi morar lá na Baixada. Não tem um cara que fique em pé com um soco dele. É uma porrada e um tombo.

- Mas lá no bairro tem um cara bravo meeeesmooo, o Paulo Careca, esse daí não dá nem pra comparar. E é irmão de um xará seu, o Daniel, que também é rockabilly. O pessoal fala que o cara já espancou muito mestre de arte marcial - continuei, sem conter os exageros, já que eu e meu primo cultivávamos uma antiga rivalidade a respeito de quem tinha os amigos mais terríveis. Nenhum dos dois queria ficar para trás, mas a chegada de um grupo de roqueiros interrompeu nossa conversa. Pela porta giratória foram passando, um por vez, o Tieta, o Nique, o Wilsão, o Píter, o Demente, o Morcegão e o Júnior Neguinho.

- E aí, Claudinho, chegou faz tempo? Pensei que você não viesse, liguei na sua casa e sua mãe falou que você tinha saído - interrogou o Wilsão, se acercando da mesa.

- É, fui até as Perdizes, mas não podia perder a última domingueira do ano. Esse aqui é o Supondo, meu primo lá de Santos. Gente fina, também curte um bom rock’n’roll.

- Supondo?! Isso é nome ou apelido? - perguntou o Wilsão enquanto esticava a mão para cumprimentar o novato na turma.

- Não, meu nome é Daniel. Supondo é o apelido que o pessoal lá da Baixada me deu.

- É que ele é metido a intelectual, gosta de falar difícil e vive querendo supor alguma coisa - acrescentei em tom de brincadeira.

- Legal, Supondo. Você vai ver como isso aqui fica animado na hora do rockabilly, o pessoal delira - contou o Wilsão. - Aliás, vocês já foram lá em cima ver como tá o movimento?

- Não, ainda não, estávamos fazendo uma hora aqui em baixo, mas já vimos que hoje tem uma mulherada forte por aqui - expliquei, ao mesmo tempo em que me levantava para cumprimentar o resto do pessoal.


- A gente convidou umas minas lá do Bonfa, acho que elas também vão colar por aí - falou o Wilsão, atiçando minha curiosidade. Em seguida, convidou: - Vamos dar um rolê pra ver como tá o movimento lá em cima?