domingo, 25 de abril de 2010

O grande show (Cap. 14/Parte 1)


O sol ainda brilhava forte quando o ônibus chegou ao ponto no final da avenida Pacaembu, pouco antes do viaduto de mesmo nome. Só para variar, desci tranquilamente pela porta dianteira. No entanto, assim que pisei na calçada e olhei para o lado, vi que a encrenca havia começado. Não havia dado tempo para que todos os malandros da turma, ávidos por fugir do pagamento da passagem, descessem pela porta traseira. O cobrador, auxiliado por alguns passageiros, havia agarrado o Tieta antes que ele escapulisse. Solidária ao amigo, a turma correu para o foco da confusão. Palavrões, empurrões, discussão, até que o Tieta conseguiu se desvencilhar do cobrador. Louco de raiva, o cara nos xingava pela janela enquanto o ônibus subia o viaduto.
- Filho da puuutaaaa!!! - Respondeu o Tieta, com o dedo médio em riste, da calçada pela qual andávamos rumo à rua Barra Funda. Enquanto isso, o Demente se divertia com a situação: - Caralho, hoje o dia promete, hoje o dia promete, o rolê já começou com treta!!! - Falou o garoto, dando uma risada debochada e esfregando a palma de uma mão contra a outra. O Tieta, entretanto, ainda não conseguia achar nada engraçado.
- Porra, que sujeito filho da puta, me agarrou pelo pescoço quando eu ia descendo do ‘busão’. Amassou toda gola da minha jaqueta e ainda estragou minha camiseta, se eu pego esse escroto quebro a cara dele - resmungava o Tieta, enquanto tentava ajeitar a gola desarrumada. A irritação do jovem roqueiro, aliás, era bastante compreensível, afinal aquele não era um fim de tarde qualquer. Estávamos a caminho do mais aguardado show de rock daquela temporada, daquele ano e, talvez, até de toda aquela década. O universo rockabilly paulistano estava simplesmente em polvorosa.
Formado por três roqueiros nova-iorquinos, o grupo que veríamos em algumas horas, o Stray Cats, era considerado o principal expoente do rockabilly contemporâneo. Dono de um enorme topete louro, o cantor e guitarrista Brian Setzer era a principal figura da banda, composta também por Slim Jim Phanton, responsável pela básica bateria equipada com apenas duas caixas e três pratos, e Lee Rocker, cuja tarefa era tocar um enorme contrabaixo acústico que parecia saído de um museu. O trio produzia um som cheio de energia e fortemente ligado aos primórdios do rock’n’roll, motivo pelo qual conseguia dividir o espaço nas nossas vitrolas com pioneiros do gênero, como Eddie Cochran e Jerry Lee Lewis.
O quarto e mais recente disco do grupo, Blast Off, era o nosso preferido, tocando em todas as festas e danceterias que frequentávamos. Os três LPs anteriores - Stray Cats, Gonna Ball e Rant N’ Rave -, mais difíceis de serem encontrados, também eram cultuados pela turma, garantindo um expressivo status a quem os possuía. O grupo, entretanto, era bem pouco conhecido fora do circuito rockabilly. Na escola onde eu estudava praticamente ninguém conhecia o som da banda americana, que também estava quase ausente da programação das rádios roqueiras, infestada naqueles dias por bandas como Guns’n Roses e Oingo Boingo. E até mesmo em sua terra natal, os Estados Unidos, berço do rock’n’roll, o trio encontrara pouco espaço para o som que produzia, sendo obrigado a trocar Nova Iorque pela inglesa Londres, onde foram acolhidos por um público bem mais receptivo. Ficara sabendo desse último fato três dias antes, quando li uma matéria, surpreendentemente publicada na capa do caderno cultural da Folha de São Paulo, noticiando a chegada do Stray Cats à cidade. Escrita por um jornalista chamado Jean-Yves de Neufeville, a reportagem de página inteira trazia também uma entrevista com Slim Jim Phantom. Uma das perguntas, aliás, era muito legal e tinha uma resposta melhor ainda. Questionado sobre quais qualidades do rockabilly o grupo procurava recriar, o batera não titubeava, apontando a excitação do som, conseguida com poucos meios e instrumentos, como a mais importante. A segunda virtude indicada por Slim era o sentimento de rebeldia que o estilo consegue manter vivo, tanto na música como no visual, nas roupas, nos cortes de cabelo e no estilo de vida. Em poucas palavras o cara resumia tudo que sentíamos naquele sábado de março, caminhando alegremente pelas decadentes ruas da Barra Funda.
Naquele momento, o Nique era o mais animado da turma, narrando com grande excitação os acontecimentos da noite anterior. Motivos para isso, aliás, não faltavam. O garoto exibia orgulhosamente a tatuagem no braço direito com o símbolo do Stray Cats - um gato com topete e costeleta -, que lhe proporcionara uma conversa com ninguém mais, ninguém menos do que o próprio Brian Setzer.
- Porra, o cara é muito gente fina. A gente estava dançando perto dele, quando eu peguei e levantei a manga da camiseta mostrando a “tatoo”. Daí o cara deu um tapinha nas minhas costas, fez um sinal de positivo e falou “Yeah, man. Yeah, man”. Foi muito loucooo!
A narrativa impressionou toda turma e foi logo confirmada pelos outros rapazes que participaram da festa no Clube C: Tieta, Wilson, Denis Demente e BB. “Puts, como fui perder essa balada! Tá certo que os caras só me avisaram às dez da noite, mas eu podia ter dado um jeito de ir”, lamentava interiormente, inconformado com o fato de ter perdido a histórica festa que ocorrera logo após o primeiro espetáculo do Stray Cats na Terra da Garoa, reunindo a nata dos roqueiros da cidade.
- Vocês precisavam ter visto, os caras não têm frescura nenhuma. Ficaram dançando rock’n’roll com a galera até altas horas - comentou o Wilson, também eufórico com o encontro da noite anterior, que proporcionara um status adicional aos cinco roqueiros da turma que o prestigiaram.
- Verdade, meu, os caras não são estrelinhas intocáveis como aquela turma do heavy metal. São bacanas mesmo, pena que vocês preferiram ficar em casa assistindo ao Globo Repórter - desdenhou o Demente, com o tradicional sorriso de escárnio estampado no rosto.
A caminhada foi breve. Logo chegamos à porta do Projeto SP, ainda completamente deserta. A chegada prematura fora planejada com bastante antecedência para evitar um possível encontro com os carecas de subúrbio. Desde o anúncio oficial da turnê da banda pelo Brasil, dois meses antes, circulava o boato de que os integrantes da mais temida tribo urbana de São Paulo atacariam qualquer forma de vida usando topete e trajando jaqueta de couro que ousasse circular pela cidade nos dias de show. A fama dos carecas era tão terrível que mesmo nós, nada bobos quando o assunto era confusão, sentíamos um grande temor de encontrá-los nas ruas da cidade. Nomes como Carlai, Paraná e Paulo Careca, alguns dos representantes dessa turma de nacionalistas radicais que circulavam pela Zona Oeste, inspiravam pavor entre punks, headbangers, góticos e, claro, rockabillies.
A grande ironia estava no fato do Paulo Careca ser o irmão mais velho de um dos integrantes da nossa turma de roqueiros, o Daniel, que também nos acompanhava naquela tarde. O sujeito moreno, cuja altura não ultrapassava um metro e setenta, mas cujos músculos super desenvolvidos mal cabiam dentro da roupa, era famoso pela extrema violência. Comentava-se no bairro que ele fora jurado de morte na Febem Tatuapé, onde estivera internado após algumas confusões. Também falava-se que já havia espancado diversos professores de artes marciais. Não era possível distinguir ficção e realidade, no entanto, sabíamos que era bom manter distância, principalmente porque ele já avisara que nem o próprio irmão seria poupado das porradas no caso de um possível encontro no dia do show.
Felizmente, até aquele momento nosso plano havia dado certo. Faltavam poucos minutos para as sete horas da noite, mas o anoitecer ainda estava distante, devido ao horário de verão que alongava o dia naquela época do ano. De qualquer maneira, ainda faltava um bom tempo para a abertura dos portões da casa de espetáculo. Assim, enquanto uma parte da turma seguiu até um boteco próximo para tomar uma cerveja gelada, o restante do grupo se acomodou no meio-fio, jogando conversa fora para passar o tempo.
- Galera, quem vai abrir o show? - perguntou o Fabrício.
- O Supla. Consegue acreditar nisso? - respondeu um Júnior Neguinho desconsolado com a decisão dos organizadores.
- Puts, que ideia!!! Onde já se viu colocar um cara desses para abrir um show rockabilly. Não tem nada a ver! - acrescentou o Fabrício, demonstrando o mesmo sentimento de indignação que tomava conta de toda galera.

3 comentários:

  1. carecas...

    pertubando a todos desde sempre!

    muito bom teu blog e a tua história brother

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  2. Olá, Funnie!!! Fico feliz que tenha curtido o blog e história.
    Abraço,
    Pedro

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  3. caía um temporal lazarento, e minha irmã e eu íamos ao projeto sp ver ao show do stray cats, bem, pegamos o super potente fiat 147, e lá fomos por meio a alagamentos e raios e trovões, depois de umas duas horas e o escapamento do porquinho perdido, chegamos a barra funda, onde não havia energia elétrica, nem dava pra ver os nomes das ruas e muito menos ler o guia 4 rodas, pra quem não sabe era o gps da época! descemos do carrinho debaixo de uma chuva torrencial e chegamos à entrada molhadas que só nóis, e a entrada estava bloqueada, por falta de luz, nisso chega atras da gente o kid vinyl que xingou meio mundo e conseguimos adentrar o recinto. como na época a prefeita era a marta suplicy, todo show ao vivo que havia em sp a abertura era do supla. bom... imaginem o supla no palco e na platéia um monte de rockabillis alucinados, era tanto topete que nem dava pra ver direito... todo mundo xingando, jogando copos nele e o tonto inventa de pular na platéia, mas foi tão rápido os topetudos abriram uma clareira e o supla espatifa no chão, foi foda, muito engraçado..

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