Mais três quarteirões andados e avistei a fachada do shopping. A construção alta, imponente, tinha à sua frente uma calçada espaçosa, onde vários topetudos conversavam ao lado de uma grande banca de jornal. Algumas meninas também estavam entre eles. Meus olhos pararam sobre uma das mais charmosas. Parecia saída de uma cena do filme American Grafitti. Parte de seu cabelo negro e liso escorria em uma simpática franja, enquanto o restante estava preso em um rabo de cavalo. Trajava uma malha vermelha de botões, camisa branca e uma saia longa de tom escuro que se estendia até pouco abaixo do joelho, permitindo a visão de uma meia soquete branca e um sapatinho preto.
- Falaaa, Batman! - gritou o Tieta para um garoto moreno, baixo e encorpado, ostentando um discreto topete e trajado com uma jaqueta de couro, onde se via uma estampa, branca e retangular, com o desenho de uma raposa roqueira e a inscrição Fox Billy.
- E aí Tieta, como é que tá?
- Bem, bem. Quais são as novidades?
- Pô, os seguranças encanaram com a gente. Não querem saber de rockabilly lá dentro.
- Porra, que sacanagem!
- Mas a gente se divide e vai entrando aos poucos, pelas portas laterais. Os caras não vão reparar
- disse nosso novo amigo roqueiro, enquanto nos cumprimentava com bastante animação. - E depois a gente se encontra lá dentro.
Concordamos com a ideia, mas antes cumprimentamos o resto do pessoal. Não conhecia muitos dos rockers que estavam por ali, a maior parte deles integrante da Fox Billy. Como não havia pressa, ficamos batendo papo por mais algum tempo, buscando nos inteirar das novidades do universo rockabilly. O papo girava em torno de música, discos raros e festas, agendadas para as próximas semanas em locais ainda desconhecidos para mim.
Acompanhado pelo Wilson e pelo Morcegão, atravessei o estacionamento térreo do shopping e entrei pela porta lateral, localizada à direita do prédio. O som do salto das botas batendo no piso encerado do centro comercial denunciava nossa presença. Postado a poucos metros da entrada, o segurança engravatado não nos barrou, mas levou o rádio à altura da boca, pronunciando algumas palavras fora do alcance de nossa audição. Felizes com o êxito da empreitada, passeamos por todo o pavimento, sem nos ater às vitrines. Subimos, então, uma escada secundária, evitando passar pelos locais mais movimentados. Demos uma volta sem pressa, observando as meninas bonitas que desfilavam pelos corredores do elegante shopping. Muitas delas simplesmente nos ignoravam, outras olhavam com asco, sentindo-se ofendidas com a nossa presença naquele tradicional ponto de encontro dos paulistanos abonados. Passando ao meu lado, uma senhora ressaltou em voz alta a queda na frequência do shopping. Ao invés de indignação com o preconceito, senti um certo orgulho. Era gostoso causar repulsa àquele tipo de gente de horizonte tão estreito.
Quatro times de futebol de botão, organizados em caixas de papelão azul, despertaram nossa atenção quando passávamos em frente a uma loja de artigos esportivos. Eu e o Wilson alimentávamos uma antiga rivalidade nesse esporte. Não gosto de confessar que, apesar de jogar bem, eu era o grande freguês nessa história, amargara inúmeras derrotas e tivera apenas uma vitória.
- A minha seleção brasileira é muito melhor que esses times aí - ressaltei em tom de desafio logo que paramos em frente à vitrine, fazendo referência aos meus dez jogadores de acrílico azul e branco, que elegera como selecionado nacional.
- Se liga, você é um baita dum freguês, só toma chocolate.
- Quem levou um couro outro dia? Fui eu?
- Você só ganhou porque ajeitou a bola com a mão - lembrou o Wilson, destacando uma passagem negra no meu currículo esportivo. Meses antes, jogávamos em minha casa. O placar era zero a zero, quando aproveitei uma distração do Wilson para ajeitar a bolinha de feltro. Rapidamente, coloquei-a numa posição melhor para o chute do meu jogador. Quando a atenção do meu adversário voltou ao jogo, avisei-lhe que ia chutar a gol. Ele arrumou zelosamente o goleiro pesado, recheado de areia, mas minha conclusão foi perfeita. A bola entrou com força no ângulo direito. Golaço! O jogo prosseguiu sem nenhuma contestação. Poucos minutos antes do término, fiz o segundo gol e comemorei como se estivesse vencendo um confronto Brasil e Argentina. Jogo encerrado, aproveitei para tirar um sarro do meu adversário enquanto guardávamos os botões. Calmo, ele olhou para minha cara e falou: “Bem, usando a mão qualquer um vence”. Eu estava desmascarado, minha armação fora flagrada e minha vitória ficara desmoralizada.
- É, tá certo, foi sacanagem minha, mas depois eu fiz outro gol.
- Se liga, você é um baita freguês - sentenciou o Wilson entre risadas do Morcegão, que se divertia com a polêmica.
Depois de alguns minutos rodando pelo segundo andar, decidimos subir mais um lance de escada e penetrar em território inimigo. O terceiro piso, repleto de lojas de grife, era o local preferido dos poperôs. Risos de deboche se misturaram a olhares provocativos quando passamos pelas mesas das lanchonetes localizadas no centro do pavimento, onde nossos rivais jogavam conversa fora. Muitas caras familiares, conhecidas da House, estavam entre eles. Havia também algumas meninas bonitas que eu costumava paquerar em nosso antigo ponto de encontro. Agora, no entanto, era improvável qualquer aproximação.
O terceiro piso possuía uma bela vista da entrada do shopping. Debruçado sobre o parapeito, observei os altos portais em forma de arco, as rampas paralelas que levavam ao primeiro e ao segundo pavimentos e o relógio de água. Antiga atração do local, esse relógio era composto por uma estrutura tubular de vidro, alta e fina, com trechos um pouco mais largos que representavam cada hora do dia. Naquele momento, o líquido verde no seu interior enchia o pedaço que indicava as cinco da tarde.
- Olha o pessoal. Devem estar se reunindo no andar de baixo - falou o Morcegão com o indicador apontando na direção de um grupo de rockers que subia a rampa rumo ao segundo piso.
- Vamos até lá galera - acrescentou o Wilson.
Sem dar bola aos playboys, pegamos a escada rolante. Enquanto descia, uma colega de colégio passou por mim no sentido contrário. Pele alva, olhos castanhos, cabelos castanhos claros, nariz levemente empinado e um corpo bonito formavam um conjunto atraente. Ela estudava uma série à frente da minha, não tínhamos contato, mas cumprimentei-a com um aceno, sabendo que a repercussão do passeio já estava garantida durante a semana. Andamos até o local onde acreditávamos que estivesse o resto do pessoal. Logo avistamos o grupo de quase trinta topetudos, conversando ao redor de alguns bancos no centro do corredor que levava a uma das rampas de acesso, bem em frente a uma loja de departamentos. Todos haviam seguido a mesma técnica, passando por entradas secundárias em trios ou quartetos. Naquele momento, conversavam numa boa. Mas o comportamento tranquilo não impediu que alguns minutos depois o grupo fosse cercado por uma dúzia de seguranças. Vestindo ternos pretos, os grandalhões vieram sugerir que nos retirássemos.
- Por quê? Não estamos fazendo nada - argumentou o Batman, indignado.
- A direção quer que vocês saiam. Estão incomodando os outros clientes - afirmou o chefe da segurança em tom grave.
- Mas a gente só está conversando - disse o Tieta, tentando intervir na conversa.
- Não posso fazer nada. As ordens são para pedir que vocês se retirem do shopping. Agora, se vocês quiserem encrencar vamos ter que chamar mais seguranças ou pedir para a polícia vir até aqui. Vocês que sabem.
- Vamos embora pessoal. Não vale a pena ficar aqui com esses caras - falou em tom de desprezo o Nique, acatando o pedido, mas deixando claro seu descontentamento.
Também fui tomado pela indignação do grupo. “Por que esses caras querem nos expulsar? Ninguém fez nada de errado”, me indagava, enquanto o pessoal saía escoltado pelos seguranças, sob o olhar curioso dos clientes do centro comercial. Resolvi, então, me separar. “Ah, filho da puta nenhum vai me expulsar de lugar nenhum. Não vai mesmooo”, resmungava interiormente.
Cara fechada, passos rápidos, tomei a direção contrária sem ser observado pelos seguranças, atentos ao centro da discussão. Logo já estava fora do alcance da visão dos engravatados cumpridores de ordem. Elevei o queixo, ajeitei a gola do casaco de couro, colocando-a de pé, e caminhei por todo aquele andar antes de subir a escada para o terceiro piso, onde alguns ‘poperôs’ se divertiam vendo a expulsão dos rockabillies. Passei batido pelos babacas, sem rumo certo. Pedi um refrigerante numa lanchonete. O copo veio cheio, quase transbordando. Tomei o refresco gelado sem pressa, corroído pelos acontecimentos recentes. Quando o último gole escorreu pela minha garganta, decidi que era hora de ir embora. Sempre altivo, desci a escada rolante, andei mais um trecho de corredor e percorri a movimentada rampa. Antes de sair, lancei um olhar de desprezo para os grandalhões postados na porta, enquanto minha cabeça sentenciava: “Pobres coitados!”
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