Levantando do piso da quadra, onde até então estivera sentado como simples observador do debate, o autor do símbolo resolveu entrar na conversa. Uma expressão de entusiasmo tomava conta do rosto moreno do rapaz. Os dentes extremamente alvos da arcada superior mordiam levemente o lábio inferior, enquanto ele enfiava a mão no bolso da jaqueta em busca do papel onde esboçara a figura do jacaré topetudo. Com um rápido movimento, pegou a folha e desdobrou-a. Seus olhos negros fixaram-se sobre o desenho por um breve instante, antes que começasse a falar:
- A gente pode escrever Gator’s no alto e colocar a data embaixo do desenho. Daí, eu dou uma incrementada, faço um círculo em volta e tá pronto o estandarte. Vai ficar bacana - argumentou o Fernandinho, apontando com o indicador direito para o papel que mantinha seguro pela mão esquerda. - Alguém tem uma caneta? Preciso de uma caneta.
As mãos dos roqueiros vasculharam bolsos de jaquetas e calças, até que o Morcegão encontrasse uma esferográfica. O plástico que recobria a carga estava levemente quebrado no lado oposto à ponta da caneta, que também já não tinha tampa.
- Tá bem detonada, mas ainda tá funcionando - disse o Morcegão, esticando a caneta para o Fernandinho.
O desenhista da turma pegou o objeto, se agachou e esticou o papel sobre o piso de cimento da quadra. Cercado pela turma, amontoada ao seu redor, acrescentou ao desenho os detalhes que acabara de mencionar.
- Muito louco! - comentou o Antero.
- Porra, bem legal! - disse o Tieta, abandonando o ceticismo inicial e manifestando sua aprovação, como vários outros roqueiros. - Vamos votar pra ver quem aprova.
- É isso aí! Fernandinho, deixa a galera toda ver o desenho pra gente votar - falou o Nique, fazendo com que o desenho passasse de mão em mão.
Depois que todos olharam, o desenho parou novamente nas mãos do Fernandinho. Logo em seguida, o Nique deu início à votação, questionando um a um os integrantes da turma:
- Wanderley?
- Bacana, gostei.
- Serginho?
- Pô, bem rocker!
Os votos abertos elegeram unanimemente o novo estandarte da Gator’s, gerando grande vibração entre os integrantes da turma. O BB, entretanto, fez o pessoal se aquietar com uma nova questão: - Tá, o desenho tá feito, mas quem vai fazer a tela pra gente pintar as camisetas e os estandartes?
- Huum, o Marcio aí do bairro faz uns trampos com silk-screen. A gente pode pedir pra ele - lembrou o Daniel.
- Caralho, mas o cara é careca. Ele vai é querer arrebentar quem for lá falar com ele - comentou o Luís, demonstrando uma vez mais o respeito que tínhamos pelos carecas.
- Se ligaa!! Esqueceu que meu irmão também é careca, amigo dele. Eu falo com ele e ele fala com o Marcio, não tem erro não. Ei, os caras também não são tão maus assim - completou de forma convincente o Daniel, um garoto magro, de estatura mediana, cabelos e olhos castanhos, mas, sobretudo, irmão de um dos caras mais temidos da região, o Paulo Careca.
- Pô, então tá legal, você fala com ele. Vê quanto sai pra fazer a tela e a gente racha entre todo mundo - concordou o Nique. - Isso fica decidido, mas tem outra coisa que a gente queria falar.
- É, pessoal, essa é uma parada séria. Não é qualquer um que vai poder usar o estandarte. Pra andar com uma jaqueta com nosso símbolo o cara tem que ser rocker meeesssmo, por isso a gente bolou um esquema pra esse início da Gator’s - ressaltou com autoridade o Tieta, despertando olhares curiosos de boa parte dos topetudos.
- A gente quem? - perguntou o Cabeção sem entender onde o Tieta queria chegar.
- A galera mais antiga. O pessoal que trouxe o movimento pro bairro. A gente se reuniu e decidiu que no começo só nós vamos usar o estandarte. Depois, vamos aprovando quem vai entrar.
- É isso aí - disse o Nique, entrando uma vez mais na prosa. - Só eu, o Tieta, o Wilson, o Denis Demente, o Píter e o BB vamos usar o símbolo da Gator’s nos primeiros meses, pra turma ganhar respeito no meio rockabilly. Depois a gente vê quem vai entrar.
A notícia derrubou meu entusiasmo como um capoeirista habilidoso derruba seu oponente. Pensei em falar algo, mas as palavras ficaram engasgadas em minha garganta. Logo, um tímido burburinho se espalhou pelo grupo. Ninguém, no entanto, se arriscou a contestar a ideia recém-apresentada. Esse comportamento reforçava ainda mais a posição dos seis pioneiros, deixando clara a influência que exerciam sobre o grupo.
“Caramba, tô tretado com meio mundo por ser rockabilly e os caras vêm dizer que ainda não tenho condições pra integrar a Gator’s. Essa história não pode ser verdade. Os caras estão criando uma elite dentro da turma e, o que é pior, me deixaram fora dela. Porra, justo eu que ando com a galera há um tempão. Não pode ser verdade, puta injustiça!!! Sacanagem”, pensava, inconformado com a nova condição.
Dessa vez, ao contrário do que acontecera minutos antes, não ocorreu nenhuma votação. O assunto estava decidido. Todos haviam escolhido o estandarte. Todos iriam pagar pela tela, mas, ao menos inicialmente, apenas meia dúzia poderia carregar o símbolo nas costas. Mais uma vez na noite, me sentia rejeitado. Primeiro fora a decepção de ver a Carol em outros braços e, agora, tinha que aguentar a surpresa de ser excluído da gangue.
sexta-feira, 28 de janeiro de 2011
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