segunda-feira, 31 de agosto de 2009

O topetudo vai à aula (Capítulo 5)

Atravessei o portão de entrada escoltado por quase uma dezena de olhares surpresos. Os olhos vidrados, o queixo caído e a boca entreaberta de Dona Zefa, a bedel que recebia os alunos, traduziam o espanto geral. A senhora simples, acostumada a alternar momentos de extrema simpatia com broncas ásperas, sequer conseguiu articular uma resposta quando a cumprimentei.

Percorri o longo corredor que levava às classes, experimentando uma situação diferente, afinal, pela primeira vez em toda minha vida escolar, eu era o centro das atenções. Risos, cochichos, olhares espantados e comentários sarcásticos brotavam no rastro das minhas pegadas. Segui andando tranquilo, cumprimentando com a cabeça os conhecidos que encontrava pelo caminho, até avistar o Rato na porta da classe. O rosto branco, salpicado por sardas e decorado por uma cabeleira lisa, de um castanho bastante claro, tinha o sorriso de gozação característico do sujeito. Parei por um instante, ciente da zombaria que me aguardava alguns passos adiante, e em seguida retomei minha trajetória.

- Espera aí, deixa eu adivinhar, você veio de moto ou viu um fantasma? - brincou com ar bonachão o descendente de iugoslavos.

- Engraçado, hein? Deixa de ser zélão, tô no visual rockabilly, não tá percebendo?

- Hahaha, tô brincando. Eu sabia que você curtia essa história de rockabilly, mas não tanto assim. Tá bacana, tá bacana!

- Rockabilly não é só música ou dança. É um estilo de vida que te acompanha vinte e quatro horas por dia - respondi com tom professoral, recitando a bela frase que ouvira de um amigo roqueiro.

Após cumprimentar o Rato, entrei na classe, feliz por ter usado a pomposa frase logo no primeiro diálogo do dia. Algumas meninas que conversavam animadamente na frente da classe viraram o rosto para me ver. Um sorriso simpático e sincero enfeitava o semblante mestiço da Marília, dona de cabelos negros bastante lisos, cortados pouco acima dos ombros.

- Caramba, você ficou louco!!! Que coragem!!! - falou a sempre extrovertida Marília quando me aproximei do grupo.

- É, resolvi adotar o visual - respondi meio encabulado, sentindo minhas bochechas corarem.

- Você é muito louco!!! O que seus pais disseram, cara?

- Não curtiram muito, não. Minha mãe arregalou um olhão enorme e meu pai falou que não era dia de festa.

- Imagino!!! - comentou a Marília antes de cair numa gostosa risada.

- Nossaaa, ficou muuuito legaaal!!! Onde você arranjou essas roupas todas? - perguntou a Camila, entrando na conversa.

- A jaqueta de couro é antiga, era de um tio quando ele era moço, e a cacharrel tava aposentada lá em casa, num canto do armário.

- E essa fivelona?

- Meu pai ganhou de algum amigo muito tempo atrás e eu acabei dominando.

- E você agora vem todo dia assim pra escola? - perguntou a Tati, a mais dondoca das três, contraindo as sobrancelhas loiras sobre os belos olhos azuis.

- É, venho sim. Rockabilly não é só música ou dança. É um estilo de vida que te acompanha vinte e quatro horas por dia - respondi com ar canastrão, feliz por ter uma nova oportunidade para usar minha frase preferida.

Segui caminhando entre as carteiras até o meu lugar, localizado no lado oposto da classe, perto de uma das janelas. Antes de sentar, estiquei a mão para cumprimentar o Nasser, um amigão que meu pai apelidara de Habib, numa alusão à sua origem libanesa. Ele, como meus principais amigos da escola naquela época, o Gabriel e o Everaldo, preferia ignorar minhas manias exóticas, agindo como se nada de diferente estivesse acontecendo. O resto dos alunos, no entanto, estava alvoroçado com a novidade. Ouviam-se cochichos e risadinhas por toda a sala quando o sinal tocou avisando o início da primeira aula. A excitação da turma só diminuiu quando a professora entrou na classe.

- Bom dia, vejo que estão bastante animados - comentou a professora, enquanto dirigia-se para a mesa na frente da sala sem olhar para os lados. Apressada, a jovem professora, que aparentava menos de trinta anos, colocou os livros que carregava sobre a mesa. Depois, pegou um deles e folheou até encontrar a matéria daquele dia.

- Bem, temos muito trabalho pela frente pessoal, espero que tenham feito os exercícios que passei na aula passada - falou a educadora, ainda com o olhar mergulhado no livro de matemática.

Pairava na sala um ar de expectativa. A turma trocava olhares, ansiosa para ver a reação da professora quando visse meu topete. Dona Valéria ergueu os olhos castanhos escuros e apoiou o queixo sobre a mão esquerda, provavelmente pensando em como iniciaria os estudos naquele dia. O ar pensativo, entretanto, foi logo substituído por uma expressão de surpresa. A cabeça da professora parou, levemente inclinada para a direita, fitando o canto da classe onde eu estava.
Por alguns instantes, as sobrancelhas negras permaneceram contraídas junto ao topo do nariz e os lábios, cerrados com firmeza, tornaram-se mais finos que o habitual. Uma suave sacudida de cabeça tirou a educadora do breve momento de transe, provocando algumas risadas entre a turma.

- Bem, vamos ao trabalho - disse a professora, afastando a cadeira e levantando-se. Enquanto ela escrevia na lousa a primeira tarefa do dia, aproveitei para dar uma última ajeitada na gola do casaco, pois sabia que o dia seria longo.

terça-feira, 25 de agosto de 2009

Assumindo o topete (Capítulo 4)

O despertador tocou de forma estridente vinte minutos antes do habitual. O som alto me acordou imediatamente. Minha reação, no entanto, foi diferente do costumeiro. Como todos os dias, estiquei o braço até o radiorrelógio, mas naquela ocasião não apertei o botão soneca, abrindo mão do sono extra naquela fria manhã, no início do inverno de 1989. Meus dedos tatearam o aparelho até encontrar o pino que desligava o despertador. Em seguida, sem embromação, joguei a coberta para o lado e levantei determinado. Estava ansioso. Tinha tomado uma decisão importante na noite anterior: a partir daquela semana ia adotar o visual rockabilly permanentemente, inclusive na escola.

Sonolento, andei até o armário, abri as portas de madeira e separei meu traje para aquele dia: camiseta branca, blusa cacharrel azul, calça jeans surrada, um par de meias brancas e um par de sapatos pretos. Também peguei outro item indispensável: o cinto negro equipado com uma enorme fivela dourada de formato oval, no melhor estilo country. Empilhei as roupas no antebraço esquerdo e segurei os sapatos com a mão do mesmo lado. Segui então até a porta, pisando com os pés descalços sobre o carpete cinza. Girei a maçaneta de maneira extremamente cuidadosa, evitando fazer barulho. A casa ainda estava silenciosa, vivendo seus últimos minutos de tranquilidade antes do despertar da numerosa família. As janelas fechadas permitiam que apenas alguns poucos raios de luz solar entrassem por suas frestas. Temendo chamar atenção, optei por não acender a lâmpada do corredor. Passadas leves, motivadas por um enorme sentimento de culpa, me conduziram pelos poucos metros que separavam o dormitório do banheiro. “Caramba, não tô fazendo nada de errado”, pensei, incomodado com a situação.

Meu pé direito, ainda quente do calor das cobertas, tocou o piso frio do banheiro. Um arrepio gelado se espalhou pela minha perna, fazendo com que me arrependesse de ter deixado o chinelo dentro do armário. “Caralho, que chão gelado!” Acelerei o passo, andando sobre as pontas dos pés, e fechei a porta do banheiro com o mesmo cuidado que tivera ao sair do quarto. Logo em seguida, coloquei o sapato no chão, ao lado de um banco de plástico, branco, sobre o qual depositei minhas roupas. Pulei, então, para o pequeno tapetinho estendido diante da pia. O pedaço de pano acolheu calorosamente meus pés, livrando-os do gélido contato com o piso.

Diante de mim, refletido no espelho, estava um rosto amassado, ornado por uma cabeleira revolta, principalmente no topo da cabeça, onde os fios longos se entrelaçavam desalinhados. A imagem sumiu quando abri a porta do espelho para pegar a escova e o creme dental. Escovei os dentes com pressa. Depois, meti-me dentro do boxe, novamente procurando um tapetinho, dessa vez de borracha. Tomei uma ducha rápida e vesti as roupas. Em seguida, me preparei para a etapa principal, a produção do topete.

Munido de uma escova de cabelo, um pote de gel e um secador, comecei a esculpir o penteado diante do espelho. O processo era o mesmo dos dias em que ia para a Cave. Primeiro, peguei a escova e levantei a longa franja, usando o secador para mantê-la no lugar. “Saco, esse cabelo não para!”, resmunguei baixinho, irritado com a trabalheira.

Quando o cabelo estava na forma desejada, ou quase, pois nunca ficava satisfeito, abandonei o secador sobre a pia e peguei o pote de gel. Enfiei alguns dedos dentro do recipiente e tirei um pouco da gosma azulada. Espalhei o conteúdo pelas mãos com uma leve fricção. Depois, comecei a passá-lo pelo topete com movimentos cautelosos, evitando desmanchar a frágil formação dos fios. Terminei de esculpir o penteado manualmente, mas antes de considerá-lo pronto, decidi dar mais uma rajada de secador, esperando que o ar quente ajudasse a fixá-lo. Por fim, passei a escova sobre o cabelo da lateral da cabeça. Cortado com máquina dois, bem curtinho, ele pouco se modificou.

Observei o penteado refletido no espelho e me dei por satisfeito. Infelizmente, minha barba rala não permitia que ostentasse outro item importante no visual de um rocker, a costeleta. Era um pouco frustrante, é verdade, mas não havia nada a ser feito. Só restava esperar que com o passar dos anos os fios ganhassem força e esse problema fosse solucionado.

A casa já despertava quando terminei a produção. Ouvi minha mãe passando apressada pelo corredor, indo provavelmente até a padaria para comprar os pães que a família comeria no café da manhã. Assim que escutei a porta da frente se fechar, sinalizando sua saída, decidi ir para o quarto. Entrei no cômodo acompanhado pelo sentimento de culpa que pulara da cama comigo naquela manhã. Fechei a porta rapidamente, evitando encontrar meus irmãos ou meu pai. Como estava adiantado, coloquei um cassete do Jerry Lee Lewis no toca-fitas para passar o tempo. Lá fora, começava o burburinho de mais um atribulado dia.

Vesti a jaqueta de couro diante do grande espelho retangular pendurado na parede. Fazendo panca de James Dean, levei as mãos até a gola do casaco, deixando-a em pé, com ar rebelde. Fitei meu reflexo, avaliando o visual. Faltava algo... Huuum!!! Talvez o ar melancólico e a cara indiferente do ator de Juventude Transviada.

Pelas pequenas caixas acústicas do toca-fitas, ecoou Wholle Lotta Shakin’ Goin’ On. Ensaiei alguns passos de rock’n’roll, entusiasmado com a música do ‘Matador’. Depois peguei a mochila da escola para conferir se todos os livros estavam ali.

Recém-chegada da padaria, minha mãe bateu na porta, me lembrando do horário.

- São sete horas, não vá se atrasar.

- Tá bom, mãe. Já vou, já tô pronto - respondi do outro lado da porta, com um sorriso no rosto, me divertindo com a mania materna de sempre adiantar o relógio em dez minutos.

Terminei de ajeitar o material, fechei o zíper da mochila e a pendurei no ombro direito. Antes de sair do quarto, parei um instante para tomar coragem. “Qual será a reação do pessoal?” Abri a porta sem pressa. Segui com passos hesitantes pelo corredor e depois pela escada. Minha mãe me olhou com cara de espanto, como se visse um extraterrestre, assim que transpus o umbral da porta da copa.

- Onde você vai desse jeito? - disse, mirando com os grandes olhos castanhos o indiscreto topete que se erguia sobre minha cabeça.

- Pra escola, ué. Onde mais eu poderia ir a essa hora?

- Mas com essa roupa?! Você não tem que usar uniforme?

- Não, faz tempo que ele não é mais obrigatório. E o que é que tem de mais ir assim?

Até então concentrado na leitura do jornal, meu pai virou o rosto para ver o que havia de tão anormal.

- Hoje não é dia de festa. Essa roupa não é apropriada pra ir à aula - disse com tom firme.

- Acho que não vão te deixar entrar. Onde já se viu ir desse jeito pra escola - indignou-se minha mãe.

- Não, não tem problema. Eles deixam sim - resmunguei irritado.

- Bom, você é que sabe, mas essa história não vai dar certo - lamentou minha mãe.

Os traços na face de meu pai denunciavam sua insatisfação, mas ele não falou mais nada. Um silêncio constrangedor encobriu a mesa, onde também estavam dois dos meus irmãos, o João e a Isabela.

Sentei-me, enchi a xícara de café e leite e passava manteiga numa fatia de pão quando meu outro irmão apareceu para dissipar a bruma de silêncio que nos envolvia.

- Poxa, você viu um fantasma? - comentou com um sorriso sarcástico estampado no rosto, tirando sarro do meu topete.

Lancei em sua direção um feroz olhar de primogênito, repleto de significados nada amigáveis. Um ano e meio mais novo, o Mathias adorava me provocar e conforme crescia menos se incomodava com minhas atitudes intimidatórias. Balancei a cabeça, como se lamentasse o comentário, mas deixei passar a provocação. Sabia que não seria a última do dia.

Jerry Lee Lewis


Olá, pessoal! No capítulo que postei hoje, o protagonista Claudinho escuta um som do músico Jerry Lee Lewis, um dos pioneiros do rock. Na foto ao lado, o roqueiro aparece durante uma apresentação na década de 50, período que foi o auge de sua carreira. Vale ressaltar, aliás, que Lewis estará no Brasil durante o próximo mês. Ele se apresentará no Credicard Hall, em São Paulo, na noite do dia 18. Esta será uma grande oportunidade para conferir ao vivo uma das lendas vivas desse estilo. Para terminar este post, segue abaixo um link para um clip de época da música Wholle Lotta Shakin’ Goin’ On:


Grande abraço,

Pedro

segunda-feira, 17 de agosto de 2009

Um estranho no ninho (Capítulo 3/Parte 2)

Nosso destino naquela tarde de domingo era a já mencionada Cave, localizada na Henrique Schaumann, distante algumas quadras de onde estávamos. Se para os outros garotos aquele era um passeio habitual, para mim ele possuía uma excepcional importância, pois era a primeira vez que ia a uma danceteria. Estava ansioso, sem saber ao certo o que encontraria, mas sentia-me feliz por aquela virada na minha vida, já que não aguentava mais a incrível pasmaceira de meu dia a dia, com tediosas voltas de bicicleta pelo bairro e infantis peladas disputadas no meio da rua.

A danceteria podia ser identificada de longe devido à grande concentração de pessoas existente diante dela. Situada quase na esquina formada pelo encontro da Henrique Schaumann - uma larga avenida, com oito faixas de tráfego - e a rua Cardeal Arco Verde, a Cave tinha como principal símbolo um carrão antigo erguido sobre um poste de ferro, vários metros acima do nível da rua.

Com o olhar atento para todos os detalhes, entrei na danceteria acompanhado por meus amigos. O ambiente, apesar de novo para mim, parecia familiar, provavelmente porque já vira muitos lugares parecidos com aquele em filmes e telenovelas. Uma grande pista de dança com formato circular ficava no centro da casa, cerca de um metro abaixo do nível do piso que a rodeava, repleto de mesinhas onde garotos e garotas proseavam. A escuridão ajudava a realçar o colorido das luzes que iluminavam a pista. E o som, muito alto, atrapalhava as conversas.

O local estava cheio, mas não lotado. Logo conseguimos um canto próximo ao balcão do bar para conversar, por mais difícil que fosse, e observar o movimento. Habituado ao ambiente burguês da Granja Viana, olhava com certa estranheza para os frequentadores da casa, principalmente para um grande grupo de garotos e garotas que faziam uma dança coreografada no meio do salão ao som de black music.

- Aqui rola principalmente house, black e pop rock, mas também toca um rockabilly animal, você vai ver - disse o Wilsão, atiçando minha curiosidade, afinal fazia dias que estava ouvindo aquela história de rockabilly.

Meu conhecimento sobre o tema até aquele momento era restrito a três discos: um do Bill Halley - que encontrara na coleção de vinis do meu pai -, uma coletânea com clássicos antigões do rock’n’roll e um lp do Elvis Presley. Esses dois últimos estavam em casa desde os meus nove anos de idade. O disco de clássicos era meu. Já o do Rei do Rock pertencia a um dos meus irmãos, o Mathias. Ambos haviam sido comprados durante um passeio ao shopping, quando meu pai parara em uma loja em busca de algum disco e, depois de muita insistência, deixara que também escolhêssemos um lp cada. Por que havíamos escolhido justamente aqueles dois vinis ainda era um mistério, mesmo após tantos anos.

Assim que a black music foi substituída pela house nas caixas de som, o Tieta nos incentivou a ir para a pista de dança: - Vamos dançar, galera, que ficar parado aqui não pega nada.

Após descer os degraus que nos separavam da pista de dança, formamos uma roda perto de um grupo com quatro garotas. Inicialmente inibido, aos poucos fui me soltando, tentando vencer a impressão de que todas as pessoas que estavam ali já haviam constatado minha total imperícia no quesito dança. “Deixa de história, Cláudio, ninguém tá nem aí pra você. Ninguém liga pro fato de você saber dançar ou não”, tentava me convencer, enquanto imitava os passos dos meus experientes amigos, procurando não fazer feio.

A essa altura o Tieta e o Nique já puxavam conversa com algumas meninas que dançavam ali por perto. Eu observava atentamente o bem sucedido avanço de meus novos amigos, admirado com a habilidade que demonstravam com o sexo oposto, principalmente porque eu não saberia sequer como abordar as garotas. “Porra, os caras são bons de papo”, pensava, observando a entusiasmada conversa que se desenrolava, inacessível, ao meu lado.

O suor já escorria por minha testa quando mudou a música que ditava o ritmo da domingueira. Finalmente chegara a hora do rockabilly, mas eu sabia que aquele som exigia um tipo de dança que, diferentemente do que acontecia até então, não permitia embromação. Ou você sabia dançar ou não. Por isso, saí do meio da pista e encostei num canto, acompanhado pelo Píter e o Wilsão. Nós, aliás, não fomos os únicos, pois a pista se abriu para os poucos que dominavam aquele antigo estilo de rock. Aproveitando-se da intimidade recém-adquirida com o grupo de garotas, o Tieta convidou uma delas para dançar. Imediatamente, Nique e Demente fizeram o mesmo. O senhor da pista, no entanto, era um outro garoto, que eu via pela primeira vez naquele preciso instante. Vestido como se vivesse nos anos cinquenta, o rapaz esbanjava habilidade nos rodopios com que conduzia sua parceira de dança.

- Quem é aquele cara ali, Wilsão?

- É o BB, conhecemos ele aqui, mas depois ficamos sabendo que ele é lá do São Domingos, um bairro colado no Bonfa. Ele já é rockabilly há algum tempo, tem um puta visual - respondeu o Wilson.

- É, e também dança pra caramba!

- É bacana, não é? Ele é gente fina, tá até dando umas dicas pra gente.

- Pô, muito louco! - Conclui, bastante admirado com a aparição daquele garoto cheio de estilo, que parecia saído de uma cena de “Nos tempos da Brilhantina”.

sexta-feira, 14 de agosto de 2009

Um estranho no ninho (Capítulo 3/Parte 1)

O estridente barulho da campainha ressoou pela casa sinalizando a presença de visitantes. Ainda com o cabelo despenteado, caminhei apressado até a janela do quarto. “Xiii, já deve ser o Wilsão”, pensei enquanto me debruçava no batente para ver quem havia chegado.

- Espera aí, já tô indo - gritei da janela do dormitório, no andar superior da casa, ao mesmo tempo em que sinalizava com a mão direita para que eles aguardassem.

- Deixa de ser lerdo, Claudinho. Vem rápido - retrucou o Wilson da calçada diante do portão, onde aguardava com mais quatro garotos.

- Tá bom, já tô descendo - respondi antes de me virar e seguir com passos rápidos até o espelho, em frente ao qual penteei o cabelo e dei uma última ajeitada na roupa. Em seguida, peguei sobre o criado-mudo o dinheiro que meu pai havia me dado para sair naquele fim de tarde e o enfiei na carteira preta que costumava carregar no bolso da calça. Afobado, ainda desliguei o rádio antes de abrir a porta do quarto e disparar escada abaixo.

- Pai, mãe, o Wilson tá aí, já vou indo - disse assim que me deparei com meus pais na sala, ao pé da escada.

- Vê se não volta tarde, que amanhã tem aula - falou minha mãe, enquanto meu pai recomendava juízo.

- Pode deixar, eu sei me cuidar - respondi, mandando beijos para ambos.

Enquanto corria para a porta de casa, ainda ouvi minha mãe perguntar para o meu pai se o Wilson e o resto da turma seriam boa companhia para mim. Não ouvi a resposta, pois a essa altura já estava fechando a porta, mas imaginei qual seria, afinal meus pais tinham uma certa implicância com o Wilsão desde a época em que tínhamos estudado juntos. O fato dele ter repetido de ano diversas vezes, inegavelmente, colaborava muito para essa desconfiança.

- Caramba, Claudinho, como você demorou! - cutucou o Wilsão no mesmo momento em que fechei a porta de casa. - Continua tranquilo como sempre, hein?

- Desculpa, não vi a hora passar. Tudo joia? - falei, esticando a mão para cumprimentá-lo.

- Beleza. Você já conhece o Nique, não conhece? - questionou meu amigo, apontando para um garoto magro, de estatura mediana e olhar muito vivo, cujo cabelo castanho claro estava cortado no melhor estilo “rabo-de-pomba”. Naquela época, aliás, esse penteado que deixava o cabelo cheio, com apenas uma estreita faixa bem curtinha na parte de baixo, estava bastante na moda.

- Só. Lembro dele lá da sua rua - respondi, tratando de cumprimentar o rapaz, que aparentava cerca de quinze anos.

Apontando os outros rapazes, o Wilsão continuou a apresentação da turma. Havia um sujeito forte, com cerca de um metro e setenta e cinco, pele bem morena, rosto arredondado e cabelos negros encaracolados, cujo apelido era bastante estranho: Tieta. Logo fiquei sabendo que aquela esquisita alcunha fora dada porque o garoto, de dezessete anos, era de origem nordestina, como a Tieta do livro de Jorge Amado e da telenovela que tanto sucesso fazia nas noites daquele ano de 1989. Entre os amigos do Wilsão também estava o Píter. Introspectivo e dono de traços orientais que deixavam clara sua ascendência japonesa, estava com dezesseis anos, assim como o outro rapaz que completava o grupo, o Denis Demente, um alemãozinho alto e forte, dotado de um proeminente nariz e de uma cabeleira loura bastante lisa, que lhe escorria pela testa. Todos estudavam no Julio Mesquita e, pelo jeito, já tinham prestado muitos serviços àquela escola, cujo ensino se estendia somente até a oitava série.

Seguimos rumo ao ponto de ônibus, localizado na margem da Raposo Tavares, sob a passarela de pedestres que ligava o Rolinópolis ao Bonfigliolli. Ainda desentrosado, participei pouco do animado papo travado entre os outros cinco garotos durante os cerca de quinze minutos de espera até que despontasse na estrada o ônibus que nos levaria a Pinheiros. Assim que ele parou, subimos pela porta traseira, como se fazia em São Paulo naquela época. O veículo não estava muito cheio, por isso resolvemos sentar antes da catraca, ali mesmo na parte de trás.

Quando o ônibus deixou a avenida Eusébio Matoso, ingressando na Rebouças, o Wilson levantou do banco e me chamou: - Vamos lá, Claudinho, vamos passar pra frente que o nosso ponto já tá chegando.

- Beleza, vamos nessa - respondi, enquanto me levantava e pegava a carteira, em busca do dinheiro para a passagem. Seguindo meu amigo, paguei o cobrador e passei pela catraca. O resto da turma, no entanto, continuou sentada tranquilamente no fundo do ônibus. “Ué? Pensei que eles fossem pra danceteria com a gente, não tô entendendo nada”, refletia, olhando com estranheza para a outra extremidade do veículo.

- Pô, Wilsão, os caras não iam com a gente pra Cave?

- Eles vão, só que vão nos encontrar mais tarde - disse de forma pouco esclarecedora meu antigo colega. Mesmo sem entender nada, balancei a cabeça como se tivesse compreendido a explicação.

Assim que o ônibus atravessou o cruzamento entre a Rebouças e a Henrique Schaumann, o Wilsão puxou a cordinha que pendia do teto do ônibus, fazendo com que soasse a campainha que sinalizava nossa intenção de descer no próximo ponto. O veículo reduziu a velocidade e, em seguida, freou. O rangido das portas se abrindo logo se fez ouvir. Primeiro, com passos lentos, desceu o Wilsão, depois foi a minha vez.

No mesmo momento em que o solado de borracha do meu tênis tocou o concreto da calçada, ouvi o motorista fazer uma queixa em voz alta e agressiva: - Molecada filha da puta! Além de não pagar a passagem, ainda atrapalha quem está subindo.

Sem conhecer o motivo da irritação do condutor, fiz um gesto interrogativo para o Wilsão, levantando os ombros e franzindo as sobrancelhas. Ele se limitou a apontar para o lado, onde, alguns metros à minha direita, os outros garotos nos aguardavam com sorrisos marotos. “Caramba, esses caras são loucos”, meditei, observando a cena inusitada sem saber que logo aquele tipo de situação se transformaria em rotina nas nossas saídas. Afinal, a tática era quase infalível. Quem havia pago a passagem pedia para o ônibus parar, aí os espertinhos se apressavam para escapulir pela porta traseira, respondendo com risos debochados aos impropérios do indignado cobrador.

- Haha, acho que o Claudinho nunca tinha visto ninguém descer pela porta de trás, galera - brincou o Wilsão, tirando risos do resto da turma.

- Só, olha a cara de espanto dele, parece que viu um fantasma. Mas não liga não, Claudinho, você acostuma - completou o Tieta, dando tapinhas amistosos no meu ombro.

segunda-feira, 10 de agosto de 2009

O rockabilly chega ao bairro (Capítulo 2)

Rrrrrrrrrrrpaaaaaaaaaaaa...

O catarro esverdeado e nojento escorreu pela cabeça do Wilson, sendo seguido por mais uma saraivada de cuspes vindos de todos os lados. Logo depois, quando o grupo parecia desanimar, alguém teve a ideia de completar o serviço com terra e grama tiradas do canteiro central da avenida.

- Para com isso, que puta babaquice! - gritei indignado com a maneira que a turma havia escolhido para homenagear o amigo aniversariante.

- Cala a boca, Claudinho!

- Deixa de ser babaca!

- Puta papo de zélão! - retrucaram os mais entusiasmados com a comemoração.

A recepção pouco animadora não impediu, entretanto, que meus apelos acabassem atendidos, provavelmente porque a homenagem já estava feita. Estiquei a mão e ajudei o Wilsão a levantar. “Puts, o cara tá breaquíssimo, tomou todas!”, pensei enquanto auxiliava o aniversariante.

O Wilson tinha tomado um porre para comemorar o décimo oitavo aniversário. O alto teor alcoólico do sangue que corria em suas veias impedira, aliás, o esboço de qualquer reação durante a homenagem que os amigos haviam lhe prestado, substituindo os ovos e a farinha pelos recursos disponíveis àquela hora da madrugada, na volta da balada.

Respingos do vômito que deixara no meio-fio da avenida instantes antes coloriam a camisa azul que trajava. O rosto pálido apresentava uma expressão abatida, enquanto levava as mãos ao cabelo negro e muito enrolado, procurando limpar a sujeira com gestos incertos e pouco efetivos. Encontrando alguma força, os lábios desbotados pelo mal-estar balbuciaram umas poucas frases: - Caaambadaaa de filhooo da putaa!!! Vão tomaaar no cu!! - sentenciou o aniversariante com a voz fraca, inaudível para o resto da turma, que já tomava o caminho do ponto de ônibus.

Eu não havia participado daquela questionável homenagem, afinal nunca curti esse tipo de coisa. “Onde já se viu cuspir na cabeça de um amigo pra comemorar o aniversário dele? Tremenda babaquice. Bom, pelo menos a turma deixou pra fazer isso na volta da balada e não na ida”, pensava enquanto voltávamos da Cave, uma boate no final da Henrique Schaumann, em Pinheiros. Naquela noite, havíamos nos divertido bastante e esperado até a última música para ir embora, não só porque estava legal, mas principalmente porque precisávamos fazer hora. Ninguém estava de carro e os ônibus só voltariam a passar por volta das cinco e meia da manhã.

Não era a primeira vez que ia à Cave. Já havia estado naquela casa em outra ocasião, mas em uma domingueira, daquelas que começam às cinco da tarde e vão até as dez da noite. Agora, a parada era diferente. Pela primeira vez tinha saído à noite para voltar apenas de manhã cedinho. Imaginava a cara dos meus colegas de escola quando contasse minha aventura, voltando de ônibus e tudo mais. O pessoal ia ficar doido. Já podia até imaginar.

Só ficava incomodado quando me lembrava dos meus pais. Me sentia culpado por voltar tão tarde. Mas eu tinha avisado. Meu pai não gostou muito, falou que era perigoso ficar zanzando de madrugada numa cidade grande como São Paulo. No entanto, acabei saindo.

A turma se dispersou depois da farra feita na cabeleira do Wilsão. Um grupo ia mais na frente. Outro um pouco atrás. Por fim, vínhamos eu e o aniversariante, que promovera a balada para garantir que seu décimo oitavo aniversário não passasse em branco. O destino de todos, entretanto, era o mesmo ponto de ônibus na avenida Rebouças, ali perto.

Conhecia o Wilsão há uns três anos. Fazia pouco tempo que eu tinha mudado para o Jardim Rolinópolis, um bairro de classe média na beira da rodovia Raposo Tavares, na região do Butantã, quando ele reforçou o time da rua num campeonato de futebol. Quem o convidou foi o Marcão “Semorre”, que já estudara com ele no Julio Mesquita, um colégio municipal localizado na outra margem da estrada, no Jardim Bonfigliolli. Foi um bom reforço, afinal ele tinha uns três anos a mais que a média do time. Mesmo assim, acabamos derrotados.

Depois desse jogo, fiquei um bom tempo sem vê-lo. Até que no início do ano seguinte, dei de cara com ele em minha nova classe na escola. Eu não esperava encontrá-lo naquele lugar, porque o colégio era longe do bairro, 14 quilômetros adiante na Raposo Tavares, já em Cotia, município vizinho de São Paulo. Além disso, era uma escola particular, cercada por condomínios bacanas, e eu não acreditava que poderia encontrar algum daqueles companheiros de futebol por aquelas paragens. Mas lá estava o meu colega de time. Começamos, então, a bater um animado papo antes do início da aula. De repente o cara ficou sério e me olhou com uma cara invocada.

- Se você contar meu apelido pra alguém, eu quebro a sua cara!

Eu o tranquilizei. Disse que não contaria para ninguém. Afinal de contas, ele era mais velho. Era bom não arrumar confusão. Confesso, no entanto, que não gostei muito daquele papinho de ter a cara quebrada. Só que entendi a preocupação dele. Não devia ser fácil ter um bairro todo te chamando por um horrível apelido e ainda ver-se na iminência de ter o segredo revelado para uma multidão de colegas ávidos por um motivo de gozação.

Além do bairro, tínhamos outra coisa em comum: éramos repetentes. Eu ainda era um novato nessa categoria - tinha acabado de repetir a sexta série -, mas logo nos entrosamos. Aos poucos, fui aprendendo a desempenhar o papel. Você faz cara feia. Fica invocado por qualquer coisa. E, se precisar, dá uns empurrões e fala grosso. Se o cara esboçar reação, você logo ameaça pegá-lo na saída. Depois, fica fazendo cara de terrorista durante o resto do dia para intimidá-lo. Isso geralmente funciona e o cara vem conversar para ver se consegue mudar a situação. Agora, se o cara não se intimidar ou se ele tiver um irmão mais velho, você tem que se virar para manter a panca de valentão. Além disso, durante as aulas você também fica mais folgado. Responde para os professores. Lembro até de uma professora que veio me perguntar, toda irônica, se tinha caído uma pedra na minha cabeça durante as férias. “Papinho furado. Bomba a gente e depois quer que fique tudo igual”, pensei na ocasião.

Havia ainda mais coisas em comum entre nós dois. Além de termos uma certa dificuldade para nos adaptarmos, achávamos quase todos os nossos colegas uns playboyzinhos, filhinhos de papai da Granja Viana, o bairro chique em que a escola estava situada. Tínhamos ainda um outro parceiro, o Breno, um alemãozinho sardento, bem folgado. Ao contrário do Wilsão, que acabara de chegar, e de mim, aluno da escola há pouco mais de seis meses, ele estudava ali fazia bastante tempo.

Mas, sabe como é, ninguém consegue fazer panca eternamente. Acabei me entrosando bem com a classe. O pessoal era legal. O Wilson estudou com a gente até o final do ano. O Breno saiu na série seguinte. Assim se desfez o trio.

Reencontrei o Wilson um ano e alguns meses mais tarde. Estava no ponto de ônibus perto de casa, numa tarde quente de verão no início de 89, quando ele apareceu. Desandamos a conversar. Ele contou que voltara a estudar no Julio Mesquita, onde estava cursando a oitava série, mas fiquei interessado mesmo quando ele falou que andava saindo bastante.

- Pô, agora tem balada todo final de semana. Sábado à noite sempre tem alguma festa no Bonfa e no domingo a turma vai toda pra Cave, uma danceteria muito louca lá em Pinheiros. Você precisa conhecer.

Minha vida andava monótona demais, por isso aquela conversa me interessou bastante. A turma da rua só queria saber de andar de bicicleta e jogar taco, coisa de criança. O pessoal do colégio era meio paradão, nada acontecia. Além disso, eu morava longe da maioria dos meus colegas de escola, o que dificultava qualquer encontro nos finais de semana. De tempos em tempos acontecia alguma coisa legal, mas era raro. E o pior de tudo é que andava sem sorte alguma com as meninas. Assim, logo aceitei quando ele me convidou para ir até a Cave no final de semana.

Antes de nos despedirmos, o Wilson ainda me contou um papo sobre um movimento que estava chegando ao bairro: - Cara, o pessoal aqui do Bonfa tá curtindo muito uma parada aí de rockabilly.

- Rockabilly, o que é isso? - indaguei curioso.

- É o som dos anos 50: Bill Halley, Elvis, Litle Richard e mais uma porção de cantores. Já tem até uns caras lá na Cave que se vestem como naquela época, com jaqueta de couro e topetão.

- Porra, que louco! Não conhecia isso aí, não.

- É legal. Se você for lá com a gente vai ver.

terça-feira, 4 de agosto de 2009

Uma noite sangrenta (Capítulo 1)

Entrei na enorme veraneio cinza com o auxílio de um dos policiais. Ao meu lado, no banco frio daquele antigo carro da polícia militar, sentou-se a garota que vinha me ajudando desde o momento em que me ergueram do chão e me levaram para ser socorrido dentro do Julio Mesquita, o colégio público da região diante do qual tudo acontecera. Ela estava nervosa. Esfregava as mãos uma contra a outra sem parar. Mesmo assim, tentava me acalmar com frases de apoio e mantinha um olhar preocupado e sincero sobre mim.

Eu a havia visto pela primeira vez alguns minutos antes de tudo acontecer, conversando, ou melhor, sendo xavecada pelo Zique. Tratava-se de uma garota baixa com longos cabelos castanhos e pele morena. Não sei dizer se era bonita, o que sei é que a atitude dela naquela noite a tornou maravilhosa diante dos meus olhos. Ela havia insistido com os policiais para poder me acompanhar. Chegara até a mentir para conseguir convencê-los. Com uma tremenda cara-de-pau, dissera que éramos amigos fazia muito tempo.

No entanto, apesar de me sentir agradecido e admirado com a atitude daquela adorável estranha, um sentimento de abandono tomava conta de mim. Muitos amigos e conhecidos haviam presenciado tudo, mas apenas dois deles, o Zique e a Taciana, tinham de alguma maneira me ajudado. O Zique estivera entre as pessoas que me levantaram e socorreram, enquanto a Taciana prometera avisar os meus pais sobre os acontecimentos daquele início de noite. Mas onde estavam os outros? E a Carol onde estava? Ah! Carol. A última vez que a vira fora durante a confusão, só de relance. Não me saía da cabeça a visão de seu rostinho assustado, lindo como sempre, perdido no meio da multidão.

Pelo canto do olho, observei a solidária desconhecida sentada ao meu lado e desejei que fosse a Carolina. Infelizmente, não era. E pensar que poucos minutos antes eu estava batendo um animado papo com a Carol, cheio de esperança e torcendo para que ela esquecesse o Nique - um amigo nosso por quem ela andava meio caidinha -, quando um bando de trogloditas desprovidos de massa encefálica surgiu brandindo ameaçadoramente porretes e tacos de beisebol para acabar com tudo. Sentia-me humilhado e deprimido. Era horrível pensar que a garota de quem eu gostava havia acompanhado tudo. Pior ainda era não ter visto a cara dela entre as pessoas que me socorreram. Torci para que ao menos estivesse preocupada comigo naquele momento.

Mal me ajeitara no interior do carro, quando o policial que havia me ajudado sentou-se ao lado do motorista, que naquele preciso instante terminava de dar a partida no motor. Após bater com força a porta, o militar disse ao parceiro que estava ao volante: - Toca para o Iguatemi, aquele hospital na Francisco Morato. - Em seguida, virou-se para mim e falou com uma voz surpreendentemente calma: - Se segura aí, que isso aqui vai pulando.

Saímos em alta velocidade. Sem vacilar, segui o conselho do policial. Segurei-me do jeito que podia para aliviar o sacolejo do carro durante o percurso. Entretanto, só pude usar a mão esquerda para me segurar, o que não adiantava muita coisa. Eu a mantinha firme sobre a parte detrás do banco do motorista. Enquanto isso, usava a mão direita para apoiar a camiseta ensanguentada que conservava em minha cabeça, tentando conter o sangue que ainda não cessara de sair dos cortes sofridos com as pancadas.

Tudo que ocorrera naquele início de noite me parecia tremendamente injusto. Existiam tantos caras mais folgados no mundo! Mesmo dentro da minha turma havia caras bem mais encrenqueiros. Por que tinha que ter sobrado justamente para mim? Simples, porque fui o mais trouxa do grupo. Como pude demorar tanto para correr se era evidente o que estava para acontecer? Droga, como fui trouxa! Deveria ter feito como todos que estavam na mesma situação. Devia ter corrido logo que eles apareceram e, sem esperar qualquer conversa, um deles acertou um tremendo soco no olho do Denis. Não, eu não queria enfrentá-los. Aquela não era a hora adequada para dar uma de corajoso. Apenas acreditei no velho ditado: “Quem não deve, não teme”. Quanta ingenuidade! Quando dei por mim, estava encolhido ao lado de uma parede de cimento chamuscado com os braços servindo de escudo para proteger minha cabeça dos incessantes pontapés desferidos contra ela e responsáveis por um considerável estrago. Isso sem contar os socos e pauladas que recebera antes de cair.

Eu não conseguia compreender como aqueles caras, cujos rostos nunca havia visto antes, podiam me odiar tanto. Na face de cada um deles transparecia uma enorme raiva. Pareciam dispostos a matar. Mas qual seria o motivo para tudo aquilo? Naquele momento, sacolejando dentro de um carro de polícia com os pensamentos a mil por hora, tudo parecia exagerado demais, desproporcional. Não conseguia entender como as pessoas podiam odiar por algo tão banal. O que as ofendia tanto? Eram minhas roupas, o meu penteado, as músicas que ouvia? Não sei. Só sei que tudo aquilo me parecia ilógico, demasiadamente estúpido para ser verdade.

Um terror incrível tomava conta de mim. A cada instante, tinha a impressão de que aqueles imbecis iriam reaparecer. Vindos do nada, continuariam a me quebrar com pauladas e chutes mais que covardes. Meus braços e pernas tremiam sem parar. Olhava assustado para o sangue espalhado pela minha roupa. Nunca havia visto tanto. Até então, vivia me vangloriando de nunca ter levado pontos ou ter quebrado qualquer osso do corpo. E o meu nariz, tinham-no acertado de jeito. A cena não me saía da mente. Vi quando um dos caras parou na minha frente e, como se tivesse mirado, acertou um chutão no meu rosto pelo espaço que ficara sem proteção entre os meus cotovelos.

Sacolejando dentro daquele carro a caminho do hospital, o medo fazia-me repetir, contínua e silenciosamente, a promessa de deixar de ser um rockabilly. Sim, era isso mesmo que faria. Cortaria o topete, compraria roupas de marca e voltaria a ser aceito por todos.

Também esqueci todas as minhas dúvidas religiosas e apelei para Deus. Ali, na condição em que me encontrava, não queria saber se o Senhor existia ou não. Nem se Ele era realmente bom. Queria apenas que Ele me ajudasse a compreender tudo que vivera naquele início de noite.