sexta-feira, 11 de fevereiro de 2011

Surge a Gator's (Cap. 16/Parte 3)


Sentado sobre o chão duro da quadra, reclinei meu tronco para trás, escorando-o sobre os braços esticados que mantinha apoiados no chão. Minha cabeça seguiu o mesmo movimento, fazendo com que meus olhos se fixassem por alguns instantes nas parcas estrelas do poluído céu paulistano. “Ééé, devia ter ficado em casa esta noite.”

Um ou outro roqueiro ainda disse alguma coisa, mas nada de importante, nada que alterasse qualquer coisa. A reunião estava terminada.

Endireitei novamente o tronco, depois bati uma mão contra a outra para tirar a poeira do piso. Antes de me levantar, puxei a manga esquerda da jaqueta, descobrindo o relógio que carregava no pulso.

-Caralho, já são mais de três e meia - comentei com o Cabeção enquanto me levantava.

-Essa noite já deu o que tinha que dar. Vamos nessa, Claudinho, que não vira mais nada.

-S`imbora - concordei com o amigo roqueiro, esticando a mão para ajudá-lo a levantar.

Segui conversando com o Cabeção na direção do canto da quadra onde estavam as meninas. No entanto, não concluímos a viagem, pois a Taciana logo veio ao nosso encontro.

- E aí, conseguiram acertar tudo? Pensei que essa conversa nunca fosse acabar - comentou a garota de cabelo castanho claro, cujos cachos curtos apenas tocavam o ombro.

- Demorou, né? Mas pelo menos ficou tudo esquematizado - respondeu o Cabeção, abraçando a namorada com o braço direito. - Vamos embora?

- Vamos, vamos sim - respondeu a garota, minha conhecida desde o período pré-rockabilly.

Como a noite já estava mais que encerrada para mim, resolvi me despedir do casal. Após beijar a Taciana e apertar a mão do amigo roqueiro, fiz um breve aceno de mão para o grupo de garotas reunido no canto da quadra. Me despedia delas por mera formalidade, pois não fazia nenhuma questão de ser notado naquele momento. Mas, quando me virava para ir embora, ouvi uma voz suave me chamando:

- Claudinho, você já vai?

- É, é, já...já tô indo - disse, voltando-me novamente na direção do grupo, ciente de quem era a dona daquela voz. - Agora, já não vira mais nada.

- Nem conseguimos conversar hoje. Também, andamos a noite toda, né?

- É verdade. Vocês já vão embora ou ainda vão ficar por aí? - perguntei, começando a me animar com a conversa.

- Não sei, vou ver o que o Nique quer fazer.

- Ah, é, o Nique - respondi com ar patético, voltando a ocupar meu insignificante posto no universo, justamente quando o garoto também chegava àquela parte da quadra.

Esbanjando a auto-confiança que o caracterizava, o Nique entrou na conversa: - Já vai nessa, Claudinho? Tá cedo ainda, vamos procurar mais uma festa aí pelo Bonfa.

- Valeu! Já deu minha hora. Vou nessa.

- Beleza, amanhã a gente conversa pra agitar as coisas da Gator’s.

- É isso aí, até mais - respondi, sem conseguir esconder o desânimo que me tomava.

Ergui a gola da jaqueta, enfiei as mãos nos bolsos e saí andando. Sem a gravidade de minutos antes, a turma de roqueiros continuava a conversar. As risadas altas e o vozerio animado sinalizavam que ninguém estava muito preocupado com o sono dos moradores das casas vizinhas à praça.

Em minha caminhada passei pelas ruas onde estivera no início da noite. A iluminação era a mesma de horas antes, mas a escuridão parecia maior. Nas janelas das salas não se via mais a luminosidade azulada das televisões. Tampouco havia faróis de carros para iluminar a via e, sobretudo, eu estava sozinho, entretido com minhas aflições.

O silêncio que demonstrava externamente durante o passeio solitário não refletia o falatório agitado que dominava minha cabeça. Impiedosas, as vozes pareciam ajudar meus ombros a se arquearem ainda mais, fazendo com que meus olhos mirassem cada vez mais fundo o asfalto que aguardava os meus passos. A impressão do fracasso também parecia tomar forma física, se transformando numa estranha sensação, pesadamente acumulada no meu peito.

“Puts, que merda, o Nique é um cara rabudo mesmo. Além disso, é bom de conversa. É, acho que a Carol tem razão. Devo ser o cara mais desinteressante da turma, talvez até do bairro ou da cidade... Quem sabe o Cabeção e uns outros excluídos como eu não querem formar uma outra turma? Ou talvez eu possa criar uma gangue com o Supondo, lá em Santos. Ou então, sozinho mesmo. Que nome eu poderia dar pra turma? Tem que ser de um bicho, em inglês. Bem, mas agora não vou lembrar o nome de porra nenhuma”, pensava enquanto percorria as silenciosas ruas do Bonfigliolli, escutando apenas o barulho distante dos carros que passavam pela rodovia.

sexta-feira, 28 de janeiro de 2011

Surge a Gator's (Cap. 16/Parte 2)

Levantando do piso da quadra, onde até então estivera sentado como simples observador do debate, o autor do símbolo resolveu entrar na conversa. Uma expressão de entusiasmo tomava conta do rosto moreno do rapaz. Os dentes extremamente alvos da arcada superior mordiam levemente o lábio inferior, enquanto ele enfiava a mão no bolso da jaqueta em busca do papel onde esboçara a figura do jacaré topetudo. Com um rápido movimento, pegou a folha e desdobrou-a. Seus olhos negros fixaram-se sobre o desenho por um breve instante, antes que começasse a falar:

- A gente pode escrever Gator’s no alto e colocar a data embaixo do desenho. Daí, eu dou uma incrementada, faço um círculo em volta e tá pronto o estandarte. Vai ficar bacana - argumentou o Fernandinho, apontando com o indicador direito para o papel que mantinha seguro pela mão esquerda. - Alguém tem uma caneta? Preciso de uma caneta.

As mãos dos roqueiros vasculharam bolsos de jaquetas e calças, até que o Morcegão encontrasse uma esferográfica. O plástico que recobria a carga estava levemente quebrado no lado oposto à ponta da caneta, que também já não tinha tampa.

- Tá bem detonada, mas ainda tá funcionando - disse o Morcegão, esticando a caneta para o Fernandinho.

O desenhista da turma pegou o objeto, se agachou e esticou o papel sobre o piso de cimento da quadra. Cercado pela turma, amontoada ao seu redor, acrescentou ao desenho os detalhes que acabara de mencionar.

- Muito louco! - comentou o Antero.

- Porra, bem legal! - disse o Tieta, abandonando o ceticismo inicial e manifestando sua aprovação, como vários outros roqueiros. - Vamos votar pra ver quem aprova.

- É isso aí! Fernandinho, deixa a galera toda ver o desenho pra gente votar - falou o Nique, fazendo com que o desenho passasse de mão em mão.

Depois que todos olharam, o desenho parou novamente nas mãos do Fernandinho. Logo em seguida, o Nique deu início à votação, questionando um a um os integrantes da turma:

- Wanderley?

- Bacana, gostei.

- Serginho?

- Pô, bem rocker!

Os votos abertos elegeram unanimemente o novo estandarte da Gator’s, gerando grande vibração entre os integrantes da turma. O BB, entretanto, fez o pessoal se aquietar com uma nova questão: - Tá, o desenho tá feito, mas quem vai fazer a tela pra gente pintar as camisetas e os estandartes?

- Huum, o Marcio aí do bairro faz uns trampos com silk-screen. A gente pode pedir pra ele - lembrou o Daniel.

- Caralho, mas o cara é careca. Ele vai é querer arrebentar quem for lá falar com ele - comentou o Luís, demonstrando uma vez mais o respeito que tínhamos pelos carecas.

- Se ligaa!! Esqueceu que meu irmão também é careca, amigo dele. Eu falo com ele e ele fala com o Marcio, não tem erro não. Ei, os caras também não são tão maus assim - completou de forma convincente o Daniel, um garoto magro, de estatura mediana, cabelos e olhos castanhos, mas, sobretudo, irmão de um dos caras mais temidos da região, o Paulo Careca.

- Pô, então tá legal, você fala com ele. Vê quanto sai pra fazer a tela e a gente racha entre todo mundo - concordou o Nique. - Isso fica decidido, mas tem outra coisa que a gente queria falar.

- É, pessoal, essa é uma parada séria. Não é qualquer um que vai poder usar o estandarte. Pra andar com uma jaqueta com nosso símbolo o cara tem que ser rocker meeesssmo, por isso a gente bolou um esquema pra esse início da Gator’s - ressaltou com autoridade o Tieta, despertando olhares curiosos de boa parte dos topetudos.

- A gente quem? - perguntou o Cabeção sem entender onde o Tieta queria chegar.

- A galera mais antiga. O pessoal que trouxe o movimento pro bairro. A gente se reuniu e decidiu que no começo só nós vamos usar o estandarte. Depois, vamos aprovando quem vai entrar.

- É isso aí - disse o Nique, entrando uma vez mais na prosa. - Só eu, o Tieta, o Wilson, o Denis Demente, o Píter e o BB vamos usar o símbolo da Gator’s nos primeiros meses, pra turma ganhar respeito no meio rockabilly. Depois a gente vê quem vai entrar.

A notícia derrubou meu entusiasmo como um capoeirista habilidoso derruba seu oponente. Pensei em falar algo, mas as palavras ficaram engasgadas em minha garganta. Logo, um tímido burburinho se espalhou pelo grupo. Ninguém, no entanto, se arriscou a contestar a ideia recém-apresentada. Esse comportamento reforçava ainda mais a posição dos seis pioneiros, deixando clara a influência que exerciam sobre o grupo.

“Caramba, tô tretado com meio mundo por ser rockabilly e os caras vêm dizer que ainda não tenho condições pra integrar a Gator’s. Essa história não pode ser verdade. Os caras estão criando uma elite dentro da turma e, o que é pior, me deixaram fora dela. Porra, justo eu que ando com a galera há um tempão. Não pode ser verdade, puta injustiça!!! Sacanagem”, pensava, inconformado com a nova condição.

Dessa vez, ao contrário do que acontecera minutos antes, não ocorreu nenhuma votação. O assunto estava decidido. Todos haviam escolhido o estandarte. Todos iriam pagar pela tela, mas, ao menos inicialmente, apenas meia dúzia poderia carregar o símbolo nas costas. Mais uma vez na noite, me sentia rejeitado. Primeiro fora a decepção de ver a Carol em outros braços e, agora, tinha que aguentar a surpresa de ser excluído da gangue.

quarta-feira, 12 de janeiro de 2011

Surge a Gator's (Cap. 16/Parte 1)

As meninas que nos acompanhavam ficaram conversando num canto da praça, enquanto nos espalhávamos pelo centro da quadra de futebol deserta e mal iluminada para discutir a pauta da noite. O clima constante de brincadeira fora substituído por uma postura grave, que comprovava a importância do assunto que iríamos colocar em discussão. Dotado de um natural espírito de liderança, o Nique iniciou a conversa.

- Bom, galera, vocês já viram o desenho do Fernandinho? Eu acho que ficou muito louco aquele jacaré topetudo como símbolo da Gator’s. O que é que vocês acham?

- Bacana, gostei - respondeu o Belo sacudindo a cabeça afirmativamente e recebendo o apoio de vários dos roqueiros espalhados pela quadra.

- Também achei legal, mas ainda tá muito cru, falta mais coisa pra ficar com cara de um estandarte de verdade - ponderou o Tieta.

Os lábios do Nique se contorceram para a direita formando uma careta com ar pensativo, ao mesmo tempo em que a cabeça balançava para cima e para baixo demonstrando sua concordância com a reflexão do outro roqueiro. Antes que ele falasse qualquer coisa, o Fabrício fez uma sugestão.

- Acho que o estandarte tem que ter um ano pintado, como fez o pessoal da The Ratz.

- Boa ideia, mas que ano? - questionou o Nique.

- Sei lá, talvez 1954. Não foi esse o ano em que foi criado o rock?

- Ééé, foi aí que o Elvis gravou That’s All Right - comentou o Flávio, o único gordinho da turma, entrando na prosa.

- Calma aí, o Bill Halley gravou antes disso. Em 53, ele lançou “Crazy Man Crazy”, o primeiro disco de rock da história. E além disso os caras da Ratz já têm 54 estampado no estandarte deles - ponderou em tom professoral o Duque, conhecido por sua erudição quando o assunto era rockabilly.

- Sei lá, meu, existem trocentas histórias sobre a criação do rock. Quem disse que essa aí que tá certa? Mas você tem razão, se a gente colocar 54 os caras da Ratz vão falar que copiamos a ideia deles - comentou o Tieta.

Abrindo os braços e fazendo uma careta brincalhona, o BB colocou mais lenha na fogueira: - E daí, tamo copiando mesmo, não tamo? Os caras que se fooodam! - disse o grandalhão da turma, tirando risadas de alguns e protestos de outros.

Até então civilizado, o debate virou uma feira livre com vinte topetudos querendo falar ao mesmo tempo. O Tieta e o Nique precisaram gritar para colocar a conversa novamente no rumo.

- Caralho, pessoal!!! Assim não vamos resolver nada! - gritou o Nique em tom exaltado.

- É isso aí, pessoal, vamos conversar que nem gente - emendou o Tieta, fazendo com que o silêncio se restabelecesse no meio da quadra.

- Então, que tal se a gente colocasse 55? Ninguém tem esse ano estampado e foi o ano em que a coisa começou a esquentar mesmo - sugeriu o Nique, já mais calmo, recebendo acenos de cabeça afirmativos de boa parte dos presentes.

- Legal, pode ser - comentei, saindo do silêncio em que me mantivera até aquele instante.

- É, bacana!!! - concordou o Wilson, com a mão esquerda coçando o queixo e o rosto tomado por uma expressão pensativa.

- Tá, mas aí como é que fica o desenho? Onde entra essa data? - questionou o Tieta.