Aquele era um domingo atípico. Os cruzamentos das grandes avenidas paulistanas estavam repletos de pessoas carregando bandeiras coloridas e distribuindo panfletos para os motoristas parados nos semáforos. Faixas pendiam das janelas dos apartamentos, identificando a posição política dos seus proprietários, e pelas ruas circulava um número enorme de pessoas, excitadas com aquela data especial. Depois de quase trinta anos de eleições indiretas, boa parte deles vividos dentro de uma rígida ditadura militar, naquele dia 17 de dezembro de 1989, os brasileiros voltavam a eleger o presidente do país. Dois candidatos de história e formação bem distintas concorriam ao cargo: Lula e Collor. Migrante nordestino, Lula começara como metalúrgico, depois se tornara sindicalista e, por fim, uma das figuras mais destacadas do cenário político nacional. A primeira vez que ouvi falar dele foi em 1982, durante a eleição para o governo do estado de São Paulo. Naquela época - pouco mais de sete anos antes, quando os ventos da redemocratização começavam a soprar pelo país -, ele causara um grande temor entre as classes média e alta. Os integrantes da parcela mais abastada da sociedade imaginavam que, caso fosse o escolhido, Lula imporia severas medidas sociais. “Nossa, será que se ele ganhar vem mesmo um monte de gente estranha morar aqui em casa?”, me perguntara insistentemente na época daquela primeira eleição, influenciado pelos comentários que ouvia em meu meio social, o mesmo que naquela nova eleição se encantara com a figura de Collor, um atlético caçador de corruptos, fluente em francês.
Ainda sem idade para votar, eu e o Daniel, meu primo de Santos, olhávamos a tudo com curiosidade e de forma descompromissada, enquanto percorríamos as várias quadras da avenida Faria Lima que separavam a avenida Rebouças do bairro do Itaim. Apesar de toda agitação e da importância daquele dia, tínhamos outras preocupações além do destino da nação.
Residente em Santos, principal município do litoral paulista, o Daniel estava em São Paulo justamente por causa da eleição. Seus pais, que moravam há pouco tempo na cidade litorânea, ainda votavam na capital, por isso subiram a serra naquele dia para dar sua contribuição ao processo eleitoral brasileiro. Aproveitando a ocasião, convidei-o para conhecer a House, o novo ponto de encontro da turma rockabilly no fim das tardes de domingo. Tínhamos nos encontrado horas antes na casa da avó paterna dele, no bairro de Perdizes. Depois de almoçarmos, colocamos a conversa em dia e acompanhamos pela televisão o desfecho do sequestro de um famoso empresário, que dividia o interesse do público com a eleição naquele fim de ano. Quando o relógio já marcava cinco horas da tarde, decidimos sair para nossa empreitada dominical. Naquele instante, caminhávamos tranquilos, sob um gostoso sol de fim de primavera.
- Porra, você precisa ver a quantidade de gatas que tem na House, é bem melhor do que a Cave, aonde a gente ia antes. Além disso, tem uma pista em que rola sempre uma sessão de rock’n’roll pra nossa galera, é muito louco, já tem uns dois meses que a gente vai lá todo domingo.
- E você já sabe dançar ou fica só de canto olhando os outros?
- Opa, já tô dançando legal, mas ainda não sou tão bom quanto uns caras da turma, como o BB e o Demente, eles dançam pra caralho.
- Legal, mas como você aprendeu a dançar? Você sempre foi meio durão.
- Pô, sozinho. Eu ficava só de olho na galera dançando, marcando os passos na cabeça. Aí, um dia eu entrei no meu quarto, tranquei a porta, encostei os móveis, coloquei um disco do Bill Halley na vitrola e dancei até aprender. Acho que o disco ficou gasto de tanto que girou na vitrola.
- Haha, você é maluco mesmo.
- E depois, num outro dia, peguei minha irmã e fiquei treinando os passos em dupla com ela até ficar craque.
- Coitadinha!!!
- Que nada, ela curtiu também, ficou craque. E como ainda é bem leve, tô conseguindo até fazer umas acrobacias bacanas com ela, você precisa ver.
- Pobrezinha da Isabela, deve ser duro aguentar um irmão roqueiro - se divertia meu primo, que, aliás, se mostrava cada vez mais interessado no universo rockabilly do qual eu tanto falava.
A House ocupava uma construção de esquina com três pavimentos. O telhado em estilo europeu e a fachada enfeitada por duendes coloridos, que contrastavam com as paredes beges, davam à casa um ar conservador, bem distinto daquele que predominava nas demais danceterias paulistanas. Sempre bem iluminado, o térreo era o andar preferido pela turma rockabilly. Ali havia um agradável bar, rodeado por mesas e cadeiras de madeira, e uma aconchegante pista de dança. No primeiro piso havia um restaurante, normalmente fechado aos domingos, quando a casa recebia apenas a garotada. Já o segundo e último andar parecia de fato uma danceteria. Cercada por espelhos, a pista fervia ao som dos últimos sucessos, principalmente poperô.
Localizada num bairro elegante, a casa atraía uma clientela mais abonada que a Cave. Apenas nossa turma de roqueiros contrastava com o ambiente, frequentado pela rapazeada endinheirada do Itaim Bibi, que, até então, ainda nos tolerava naquele valorizado pedaço de terra da capital paulista.
Diante da porta giratória, separada da calçada por dois largos degraus, uma pequena multidão se concentrava naquele fim de tarde. Como aquela seria a última domingueira do ano, já que a casa estaria fechada nas semanas seguintes para as festas de Natal e Reveillon, ninguém queria ficar de fora. Ainda assim, eu e o Daniel conseguimos entrar com certa facilidade. Como meus amigos ainda não haviam chegado, nos sentamos em volta de uma das mesinhas do térreo para aguardá-los. Nossa conversa abordava o mesmo tema de minutos antes, quando caminhávamos pelas ruas da região.
- Rockabilly não é só música ou dança, é um estilo de vida que te acompanha vinte e quatro horas por dia - falava em tom professoral, quando uma confusão chamou nossa atenção. Do lado de fora da danceteria, um segurança discutia com alguns garotos. Nós observávamos a tudo pela janela de vidro esfumaçado localizada bem ao lado de nossa mesa. O bafafá, entretanto, terminou rápido, com uma bela rasteira do leão-de-chácara em um dos rapazes, que caiu sentado sobre o asfalto duro da rua. O golpe desmoralizou os garotos, convencendo-os a deixar a encrenca de lado.
- Caramba, o cara é bom, hein? - comentei, impressionado com a habilidade do segurança.
- É mesmo! Lá em Santos tenho um amigo assim, fera em artes marciais, o Japonês, você precisa conhecê-lo um dia desses - disse o Daniel. - Ele consegue encarar até três caras de uma vez.
- Bem, isso o BB e o Tieta também fazem, e olha que eles não praticam arte marcial nenhuma, são bons de briga mesmo.
- Como o Bahia, um outro amigo meu, que nasceu em Salvador, mas foi morar lá na Baixada. Não tem um cara que fique em pé com um soco dele. É uma porrada e um tombo.
- Mas lá no bairro tem um cara bravo meeeesmooo, o Paulo Careca, esse daí não dá nem pra comparar. E é irmão de um xará seu, o Daniel, que também é rockabilly. O pessoal fala que o cara já espancou muito mestre de arte marcial - continuei, sem conter os exageros, já que eu e meu primo cultivávamos uma antiga rivalidade a respeito de quem tinha os amigos mais terríveis. Nenhum dos dois queria ficar para trás, mas a chegada de um grupo de roqueiros interrompeu nossa conversa. Pela porta giratória foram passando, um por vez, o Tieta, o Nique, o Wilsão, o Píter, o Demente, o Morcegão e o Júnior Neguinho.
- E aí, Claudinho, chegou faz tempo? Pensei que você não viesse, liguei na sua casa e sua mãe falou que você tinha saído - interrogou o Wilsão, se acercando da mesa.
- É, fui até as Perdizes, mas não podia perder a última domingueira do ano. Esse aqui é o Supondo, meu primo lá de Santos. Gente fina, também curte um bom rock’n’roll.
- Supondo?! Isso é nome ou apelido? - perguntou o Wilsão enquanto esticava a mão para cumprimentar o novato na turma.
- Não, meu nome é Daniel. Supondo é o apelido que o pessoal lá da Baixada me deu.
- É que ele é metido a intelectual, gosta de falar difícil e vive querendo supor alguma coisa - acrescentei em tom de brincadeira.
- Legal, Supondo. Você vai ver como isso aqui fica animado na hora do rockabilly, o pessoal delira - contou o Wilsão. - Aliás, vocês já foram lá em cima ver como tá o movimento?
- Não, ainda não, estávamos fazendo uma hora aqui em baixo, mas já vimos que hoje tem uma mulherada forte por aqui - expliquei, ao mesmo tempo em que me levantava para cumprimentar o resto do pessoal.
- A gente convidou umas minas lá do Bonfa, acho que elas também vão colar por aí - falou o Wilsão, atiçando minha curiosidade. Em seguida, convidou: - Vamos dar um rolê pra ver como tá o movimento lá em cima?