sexta-feira, 22 de janeiro de 2010

A Fera do Rock (Cap. 11/Parte 2)

A sala já estava escura quando entrei. Apenas a luz colorida que vinha da tela a iluminava. O público era pequeno. Além da nossa turma, espalhada pelas cadeiras do fundo, havia alguns casais, um ou outro solitário e um grupo com quatro garotos que ainda conversavam animadamente.

Sentei perto da turma. A essa altura, Morcegão, Píter e Denis já estavam esparramados nas poltronas do cinema como se estivessem nos sofás de suas próprias casas. As botas de couro que calçavam se destacavam no ar, apoiadas sobre os encostos das poltronas postadas diante deles. Assim que o filme começou, um silêncio concentrado tomou conta da sala. Só mesmo o “Matador” pra fazer o pessoal ficar em silêncio dentro do cinema. Normalmente, num momento como aquele, pipocas estariam voando, acompanhadas por risos escrachados e grunhidos indiscretos. Naquela tarde, entretanto, os topetudos pareciam rapazes educados, enfeitiçados pela sétima arte.

Pena que o mesmo não acontecia com o quarteto de garotos sentado mais à frente. Sem saber do risco que corriam, se portavam da mesma forma que nossa turma se comportaria na plateia de qualquer outro longa-metragem. O problema é que estávamos diante da tela onde seria exibida a história de ninguém mais ninguém menos que Jerry Lee Lewis. Uma situação que, sem sombra de dúvida, exigia respeito.

- Esses babacas não vão calar a boca? Tô querendo ver o filme - resmungou o Tieta, recebendo manifestações de apoio de toda galera.

- Caralho, esses escrotos não sabem que esse é o filme do “Matador”? Alguém tem que dar um toque nesses babacas pra eles se comportarem, eles devem estar pensando que isso aqui é um filme daquele palhaço do Jerry Lewis - observou o Duque, indignado com a situação e fazendo referência ao humorista norte-americano, xará do cantor de rock’n’roll.

- Calma, calma, galera, vou lá falar com eles - disse o BB, levantando da cadeira em que estava sentado.

O grandalhão percorreu o corredor lateral do cinema com passadas tranquilas. Observado por nossos olhos atentos, entrou na fileira à frente dos barulhentos expectadores. Após arrumar a gola da jaqueta no melhor estilo James Dean, parou com os braços cruzados e o tronco inclinado diante dos quatro garotos. Depois de mirá-los por um breve instante, apontou o indicador para um deles e o chamou para mais perto. O sujeito se aproximou subserviente, balançando a cabeça conforme o BB cochichava algumas palavras em seu ouvido. Logo em seguida, o cara se recostou novamente na cadeira, sem fazer um pio. O rock’n’roll do “Matador” não precisava mais rivalizar com os comentários estúpidos dos desavisados rapazes.

Utilizando as mesmas passadas lentas, o BB voltou para junto do grupo nas últimas fileiras do cinema e se esparramou novamente na poltrona. Curioso, o Morcegão perguntou o que ele havia dito.

- Nada de mais, só expliquei pra ele que o filme na tela era sobre o “Matador”.

- Só isso?

Um sorriso irônico brotou no rosto moreno do roqueiro antes que ele respondesse à pergunta: - É, e também falei que meus nove amigos sentados no fundo do cinema iam ficar muito, muito chateados mesmo se não conseguissem ver o filme direito - concluiu, tirando risos do restante da turma.

A fera do rock, nome dado ao filme sobre Jerry Lee Lewis no Brasil, era o mais novo integrante de uma extensa lista de longas-metragens obrigatórios a qualquer rocker que se preze. Os primeiros filmes dessa relação eram os estrelados por James Dean, que, apesar de não tocar nem cantar nada, simbolizava como ninguém a cultura rockabilly. O topete, a camiseta branca, a calça jeans surrada, a jaqueta de gola levantada e o comportamento rebelde do personagem interpretado pelo ator em “Juventude Transviada” eram a principal fonte de inspiração da turma.

O grande problema era encontrar os filmes do “Jimmy”. Afinal, poucas locadoras os mantinham em catálogo e as redes de televisão dedicavam pouquíssimo espaço a filmes antigos como os estrelados pelo astro norte-americano, falecido em um acidente com seu Porsche Spider em uma rodovia californiana, no ano de 1955, quando tinha apenas 24 anos de idade.

O mesmo problema acontecia com outros tantos clássicos rockabillies. Entre eles, Jailhouse Rock, Sementes da Violência, American Grafitti e os filmes de Elvis Presley. Minha sorte era ter amizade com um cinéfilo inveterado, o Léo, um cara que aos catorze anos se orgulhava de já ter assistido o clássico cinematográfico Crepúsculo dos Deuses (Sunset Boulevard) mais de 70 vezes. O sujeito gorducho, descendente de japoneses e italianos, possuía uma grande coleção de fitas, gravadas madrugada adentro para saciar seu desejo pela sétima arte.

Assisti aos três filmes estrelados por James Dean justamente nas fitas gravadas pelo Léo. Apaixonado pelas grandes obras da literatura e vencedor de concursos de redação, meu amigo vivia em um ambiente completamente distinto do meio roqueiro em que eu transitava. Tínhamos em comum, no entanto, uma posição marginal dentro do universo escolar. Minha jaqueta de couro me distanciava dos demais colegas da mesma forma que sua intelectualidade precoce.

Normalmente víamos os filmes após as aulas, na casa dele, num condomínio bacana nas imediações da escola. As sessões vinham sempre acompanhadas por explicações: “Vidas Amargas é o melhor filme de James Dean. Em ‘Rebel without a cause’ (Juventude Transviada), ele estava muito canastrão... Não, Vidas Amargas não tem briga de canivete nem rachas de carros, é um filme baseado num livro do Steinbeck, um dos maiores escritores americanos.”

Alguns filmes mais novos também estavam na lista de preferidos dos rockers paulistanos. La Bamba, que conta a vida de Ritchie Valens, era o principal deles. Além de narrar a história do roqueiro de origem mexicana, La Bamba trazia versões de diversas músicas, com destaque para Brian Setzer, vocalista dos Stray Cats, interpretando a clássica “Summertime Blues”, no papel de Eddie Cochran. Curiosamente, assistira esse longa-metragem, dois anos antes, na mesma sala de cinema em que naquele momento acompanhava a exibição de “Great Balls of Fire”. Naquela época, entretanto, nunca tinha escutado o termo rockabilly nem imaginava que um dia andaria de topete e jaqueta de couro.

Outros filmes obrigatórios eram “Nos tempos da Brilhantina” (Grease), estrelado por John Travolta e Olivia Newton John, e “Vidas sem rumo”, que lançou uma nova geração de astros de Hollywwod. Enfim, tudo que fizesse referência aos anos 50 era acompanhado com muita atenção.

Naquela tarde, a magia da telona permitia uma entrega ainda maior que a habitual. Por isso, não estranhei quando alguns amigos levantaram para dançar no corredor lateral do cinema. O rock’n’roll de Jerry Lee Lewis extrapolava a tela do cinema. Era como se estivéssemos em plena década de 50, ou melhor, como se estivéssemos realmente na plateia de um show do “Matador”. Por isso, ao menos para nós, não havia nada de estranho em dançar na sala de cinema.

No corredor do lado esquerdo, o Fernandinho já havia desistido de acompanhar o filme da poltrona. Apesar dos olhos vidrados na tela, permanecia encostado na parede da sala, entregando-se aos passos roqueiros toda vez que Jerry Lee Lewis dedilhava com violência o teclado do piano.

Meu poderosíssimo lado certinho não me permitia sair da poltrona. Mesmo assim, via com deleite a sala de cinema se transformar numa verdadeira pista de dança, para estranheza dos demais expectadores, incapazes de reconhecer a intensidade da sintonia entre nosso grupo e o personagem do filme.

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