terça-feira, 22 de dezembro de 2009

A fera do rock (Cap. 11/Parte 1)

Uma garoa persistente teimava em cair sobre a cidade, deixando a temperatura mais amena que o habitual no fim de novembro. A tarde escura combinava com os trajes roqueiros que vestíamos. E a água da chuva insistia em desarrumar nossos topetes. Molhado após alguns minutos de caminhada ao relento, o cabelo escorria desajeitado sobre nossas testas, desfalcando-nos de uma das principais marcas de um legítimo rockabilly.

- O Nique passou tanto sabão no topete que se ele parar aí no meio da rua consegue tomar um banho inteiro. Olha ali, já tá até formando bolhinhas - brincou o Wilson, satirizando o amigo que enchera o cabelo de sabão para fixar o penteado.

- No cabelo do Wilson a água nem consegue escorrer de tão duro que é - retrucou o Nique, fazendo jus à tradição que cultivávamos de responder imediatamente a qualquer troça sofrida. A troca de insultos, afinal, era um item quase obrigatório em nossas incursões pela cidade. Normalmente o bom humor prevalecia, mas vez ou outra alguém apelava.

- Cala boca! Vou é arrumar este topete, que tá uma merda - disse o Wilson assim que cruzamos a porta de entrada do shopping Eldorado.

A situação era realmente incômoda. Um rocker sem o topete é como um militar sem a farda ou um executivo sem o terno e a gravata, ou seja, praticamente nada. Por isso, a primeira atitude do grupo ao entrar no shopping foi se dirigir ao banheiro para ajeitar o penteado.

Depois de dar uma mijada, lavei as mãos e parei diante do espelho. Os longos fios de cabelo que normalmente formavam meu topete estavam caídos sobre a testa em forma de franja. Peguei o pente do Morcegäo emprestado para colocar os fios úmidos novamente no lugar, mas o gel fora embora com a água da garoa, impedindo o sucesso do reparo.

- Cacete, meu cabelo tá uma merda - reclamei diante do espelho, enquanto passava o pente de volta para o dono.

- O meu também tá uma inhaca. Não tem muito como ajeitar isso aqui, não - concordou o Morcegão.

O BB, que dividia conosco o espaço diante do espelho, pôs fim às lamentações: - Que se foooda, galera!!! A gente não veio aqui pra arranjar namorada, viemos para ver o Matador, “The Killer” - disse o garoto, enquanto os dedos de suas mão tocavam nervosamente a pia do banheiro, como se fossem os endiabrados dedos de Jerry Lee Lewis estraçalhando o teclado de um piano.

- É isso aí, vamos nessa. Já tá quase na hora da sessão - falei, concordando com o BB. Afinal, aquele era o dia de estreia do longa-metragem “Great balls of fire”, que contava a história de um dos pais do rock’n’roll, justamente ele, Jerry Lee Lewis.

Há dias aguardávamos ansiosos para assistir ao novo filme, estrelado por Dennis Quaid. As novidades eram poucas no universo rockabilly, uma vez que estávamos mais de 30 anos defasados em relação ao movimento original. Por esse motivo, a chegada de um filme sobre um dos principais ícones do rock’n’roll causara grande agitação entre os membros da turma. Logo que ficamos sabendo o dia da estreia, nos organizamos para acompanhá-la. Além da grande curiosidade pelo personagem principal, não podíamos ficar atrás das outras turmas de rockers da cidade.

Formado por dez garotos, nosso grupo percorria as escadas rolantes e corredores do shopping sem se preocupar em ser discreto. Os seguranças nos miravam com olhar severo, à distância.

Me separei do grupo por alguns instantes para comprar um presente para a Karen, a japonesinha simpática que havia tirado no amigo secreto da escola. Apressado, entrei numa loja de moda jovem e comprei uma carteira preta com um imenso símbolo do Batman. Também graças ao cinema, o homem das trevas andava na moda naquela época. Só não parei para pensar se aquele seria um bom presente para uma garota de catorze anos. Na verdade, acho que a coitada, depois de esconder aquela lembrancinha de gosto duvidoso em algum canto do armário, deve ter passado anos sem participar das trocas de presentes que marcam o fim de ano.

Compra feita, saí andando apressadamente rumo ao terceiro e último piso do shopping, onde ficavam as salas de cinema. Logo vi parte dos topetudos, ou ex-topetudos, amontoada perto da catraca. Antes de ir ao encontro deles, enfiei a mão no bolso da jaqueta e peguei o dinheiro que havia separado para o ingresso.

A testa enrugada da bilheteira denunciava sua estranheza diante da clientela daquela tarde de sexta-feira. A senhora gordinha, que me olhava com uma cara curiosa, fez menção de falar alguma coisa, mas acabou desistindo. Só quando eu já saía com o bilhete, tomou coragem:

- Ei, por que vocês todos estão vestidos assim? Vocês são punks? - questionou a senhora de pele mulata e rosto redondo, aparentando uns cinquenta anos.

- Não, não, somos rockabillies.

- Aaah! E o que é esse tal de rock, rockabill, rockbilly?

- A gente curte os anos 50, dona. Música, roupa, visual e tudo mais.

- Que bonitinhooo!!! Todo mundo igualzinho, né?!

- Mais ou menos, mais ou menos. Ninguém é igualzinho, né? Mas deixa eu ir, o filme já vai começar.

- É, é, o trêiler já deve estar passando.

Pelo jeito a ausência do topete havia acabado com a nossa moral. A bilheteira tinha até nos achado bonitinhos. Não podia haver nada pior!

sexta-feira, 4 de dezembro de 2009

Uma conversa muito louca (Cap. 10/Parte 2)

O curto passeio pelos corredores da escola pareceu durar uma eternidade. A porta da sala da diretora estava entreaberta quando chegamos. Antes de entrar, o bedel deu uma leve batida com os nós dos dedos da mão direita na madeira da porta. Depois, colocou a cabeça para dentro e anunciou nossa chegada: - Dona Vera, com licença, o Cláudio está aqui. - Um breve silêncio antecedeu a resposta da diretora, que usou um tom de voz rigoroso para pedir que eu entrasse.

Os escuros olhos verdes da diretora fixaram-se em meu rosto com um ar pouco amistoso no mesmo instante em que transpus o umbral da porta. Meu estômago queimava diante das pouco animadoras perspectivas. Apesar de um pouco invocado, sempre fui quieto, pouco afeito à bagunça, por isso não estava familiarizado com situações daquele gênero. Aquela era apenas a segunda vez que entrava naquele temível escritório, símbolo supremo da autoridade escolar. Minha primeira visita fora mais de dois anos antes, quando me envolvi em uma briga durante a aula de educação física.

A mulher de volumoso cabelo cor de fogo, cuja idade passava alguns anos dos quarenta, compensava a baixa estatura com uma postura enérgica, dosada por pitadas de compreensão, provavelmente adquirida graças aos estudos que fizera na área de psicologia. A disciplina de Freud era, aliás, a grande paixão da diretora, que conciliava o trabalho na direção da escola com aulas sobre o tema para os alunos do primeiro colegial. Caso continuasse por ali, seria, inevitavelmente, aluno dela no ano seguinte, como acontecia com meus rivais naquela ocasião.

- Sente-se, por favor - falou Dona Vera, enquanto o Bedel fechava a porta atrás de mim.

Ajeitei-me na cadeira, observado atentamente pela diretora, cujo silêncio contribuía para aumentar a gravidade da situação.

- Então, Cláudio, o que está acontecendo? O que esses rapazes vieram fazer aqui?

- Naaada - falei de forma arrastada, hesitando para responder a pergunta.

- Como nada? Ninguém sai de longe só para passear na porta de uma escola.

- Bem, na verdade, eles ficaram sabendo que tem uma turma aqui que não gosta muito de rockabilly. Então, bem, resolveram vir saber por que isso acontece.

- O que há de estranho nisso? Ninguém é obrigado a gostar da mesma música que vocês.

- Bem, é verdade. É que não é bem da música que eles não gostam. Eles não gostam das pessoas que gostam de rockabilly.

- Como você?

- Ééé.

- Huumm - resmungou a diretora, cruzando os braços sobre a mesa e cravando o olhar ainda mais fundo em meus olhos. - Sabe, ser diferente não é uma coisa fácil. Você lembra de mais alguém em toda escola que se vista desse jeito?

- Não - respondi, sentindo uma ponta de orgulho.

- Então, se todos se vestem de maneira normal e você usa essas jaquetas pretas, quem está errado?

- Não sei.

- Talvez fosse melhor você deixar de usar essas roupas na escola.

- É, talvez, mas se o uniforme está liberado...

- Sabe, nós precisamos saber distinguir o lugar certo para cada coisa. Essa roupa seria legal numa festa, mas não na escola. Você já imaginou um advogado indo a uma audiência trajado dessa maneira?

Cabisbaixo, mirei por um instante as pontas finas das minhas botas. É claro que eu podia entender o que a diretora falava, afinal meu pai dizia a mesma coisa fazia uma eternidade. “Mas rockabilly não é só uma roupinha de festa, é muito mais que isso”, meditei, procurando tomar coragem para me expressar novamente. Sobre meu colo, minhas mãos se esfregaram, revelando a ansiedade que me dominava, enquanto a sala era ocupada por um ameaçador silêncio. Tomado por uma súbita coragem, decidi explicar minhas ideias à diretora, talvez ela compreendesse minha situação. Ergui a cabeça, um pouco intimidado, e disparei minha frase favorita.

- Rockabilly não é só música ou dança. É um estilo de vida que te acompanha vinte e quatro horas por dia - disse em tom sério, fazendo uma breve pausa para realçar a importância da declaração, antes de concluir o pensamento. - Por isso, tanto faz o lugar, um rocker é sempre um rocker.

A diretora respirou fundo, pouco satisfeita com a minha resposta. Depois voltou à carga.

- Você já ouviu falar no Roman Polanski, o diretor de cinema?

Surpreso com a pergunta, pensei por um instante em busca da resposta. “Puts, já ouvi esse nome, mas agora não lembro direito quem é. Devo ter ouvido o Léo falar alguma coisa sobre ele”, matutei, lembrando-me de um jovem amigo cinéfilo.

- Acho que sim - respondi pouco convicto.

- Esse diretor, o Roman Polanski, sempre foi um homem muito polêmico. Quando ele estava cursando cinema, ainda na Polônia, organizou um baile de alunos e convidou um bando de arruaceiros para invadir a festa e causar confusão para que ele pudesse gravar um filme, misturando ficção e documentário.

“Poxa, que ideia legal”, pensei, sem compreender onde a diretora queria chegar.

- Mas, anos depois, quando já era um diretor consagrado, ele se casou com uma atriz famosa, muito bonita, a Sharon Tate, que tinha trabalhado em um filme dele. O problema é que um dia a casa dessa atriz foi invadida por uma gangue de fanáticos, liderados por um psicopata - nesse instante, a diretora fez uma breve pausa, buscando na memória os detalhes da história que narrava. Ainda sem entender absolutamente nada, eu a observava com as sobrancelhas franzidas e ar curioso.

- Esse líder da gangue achava que era Jesus Cristo reencarnado e também acreditava que os Beatles eram anjos enviados à Terra para avisar sobre o apocalipse. Era um fanático por rock e seus seguidores formavam a gangue que invadiu a casa da esposa de Polanski - narrava dona Vera, com os olhos mergulhados nos meus e ainda com ar severo, criando uma tensa atmosfera. - Essa gangue invadiu a casa da Sharon Tate e promoveu uma chacina, matando a atriz e todos os amigos dela que estavam por ali. Depois, os assassinos escreveram nas paredes, com o sangue das vítimas, três frases que faziam referência às músicas dos Beatles. Uma dessas frases era “Helter Skelter”, pois eles achavam que a canção do quarteto inglês representava o caos total, a revolução final, a destruição - continuou a educadora, absorta na terrível narrativa. Eu continuava observando-a atentamente, agora com uma careta no rosto, onde misturavam-se curiosidade, estranheza e um bocadinho de piedade.

- É verdade que os Beatles não tinham nada a ver com isso. Esses assassinos eram uns loucos varridos - encerrou dona Vera, com a expressão aliviada, saindo do êxtase. Logo em seguida, continuou: - Eu pedi para seu pai vir buscá-lo. Você vai levar apenas uma advertência, mas não quero mais saber de confusão. Fique longe dos rapazes do colegial. Eles me disseram que você começou tudo dando uma ombrada no Ronaldo alguns dias atrás. Então, evite ficar perto deles. O último bimestre já está começando e não seria nada bom pra você levar uma suspensão ou até ser expulso nessa altura do ano.

- Ma-mas, dona Vera - gaguejei, querendo explicar que não era o único responsável pela confusão. - O Ronaldo e o pessoal do colegial vivem me provocando, eles chegaram a escrever na parede da classe...

- Agora chega. Eu já conversei com o Ronaldo e não quero mais saber de confusão - concluiu a diretora, segundos antes do sinal soar pelos corredores da escola, anunciando o horário de saída dos alunos do colegial. - Aliás, mandei que ninguém saísse até que seus amigos fossem embora, seja por iniciativa própria ou com a ajuda da polícia, que já está a caminho. Queira se retirar, por favor.

Novamente cabisbaixo, sentindo-me derrotado, tratei de me levantar. As forças para prosseguir argumentando tinham se esvaído e estava claro que a balança não pendia muito pro meu lado. Alojei minhas mãos nos bolsos da calça, balancei a cabeça para me despedir da principal autoridade do universo escolar e segui caminhando rumo à porta. Antes de abri-la, entretanto, um pensamento surgiu em minha cabeça: “Porra, cara, cadê seu orgulho? O James Dean nunca sairia da sala da diretora desse jeito.” A nobre ideia fez com que ajeitasse meus ombros, até então curvados em um inconsciente sinal de subserviência. Logo em seguida, tirei as mãos do bolso e as conduzi até a gola da jaqueta, tratando de revitalizar o visual roqueiro. “Assim é melhor. Derrotado, sim. Humilhado, não”, disse para mim mesmo, recobrando a auto-estima, enquanto minha mão direita girava a maçaneta da porta.

A recente conversa com a diretora ainda ressoava em minha cabeça quando entrei no corredor. Apesar de não simpatizar muito com a causa rockabilly, ela não tinha me suspendido nem expulsado, como muita gente apostara pelo colégio afora. Mas o que realmente me intrigava era a história do Roman Polanski. “Caramba, não entendi nada. Será que ela quis me comparar com o tal diretor de cinema ou quis dizer que a minha turma é igual à tal gangue de malucos que ela falou. Não sei, não, acho que ela viajou na maionese ou, então, não tá batendo bem.”

quarta-feira, 2 de dezembro de 2009

Polanski e Buddy Holly

Olá, amigos! Neste décimo capítulo, o protagonista do livro tem uma séria e pouco esclarecedora conversa com a diretora da escola onde estuda. Em sua argumentação, a educadora cita o diretor Roman Polanski. Adepto de temas bizarros e muito humor negro, o cineasta voltou à cena internacional graças à sua recente prisão na Suíça, em conseqüência de um processo que responde nos Estados Unidos por ter mantido relações sexuais com uma garota de apenas 13 anos, em 1976. Bem, quem quiser conhecer um pouco mais sobre Polanski, que aparece na foto ao lado com Sharon Tate, pode conferir os trailers de um dos seus principais filmes, Chinatown, que estão disponíveis no YouTube pelos seguintes links:
http://www.youtube.com/watch?v=2yJJWXhXbuI
http://www.youtube.com/watch?v=3aifeXlnoqY
Já quem prefere mesmo um bom rock’n roll pode conferir um vídeo do cantor Buddy Holly, citado durante a garimpagem do capítulo 8. Trata-se de uma apresentação, feita em dezembro de 1957, em um programa de tv norte-americano.
http://www.youtube.com/watch?v=WQiIMuOKIzY
Grande abraço!